sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

CÁPSULA DE ADEUS

Em 2009 comecei a escrever. Já escrevia, sempre escrevi. Mas em 2009 resolvi que era tudo o que eu queria fazer. Me joguei em várias oficinas de escrita criativa. Acho que quando você resolve brincar de algo, tem que brincar direito. Em uma delas comecei uma série de fragmentos de narrativa que chamei de “Cápsulas de Medo e Amor”. Ainda não publiquei, mas tenho um carinho enorme por esse material. Cada fragmento conta uma história sobre amor, e sobre o amor vencendo o medo. Medo da solidão, medo da incerteza, medo da velhice, medo do desconhecido. Algumas eram pura criação da minha cabecinha, outras foram roubadas e coladas entre histórias de amigos. Algumas são verdadeiras e aconteceram comigo. 

Uma dessas cápsulas fiz em homenagem à minha avó paterna. É uma das cápsulas verdadeiras. Ela morou mais de 13 anos com a gente depois que teve um derrame e ficou perigoso morar sozinha. Odiava não poder morar sozinha. Ela era uma mulher independente dentro da sua cultura e criação. Adorava fazer tudo sozinha. Andava para baixo e para cima. Às vezes pegava uma linha de ônibus e ia até o final. “Para ver onde vai dar”. Era louca por supermercados. Ia todos os dias. Comprava todas as novidades das prateleiras. “Para saber que gosto tem”. Aprendi isso com ela. A vida é para se experimentar. Ser curiosa. Ande, explore, teste. Veja que gosto a vida tem. 

Semana passada minha prima me ligou chorando. Minha avó estava morando no interior com meu pai e havia sofrido um AVC violento. Fomos no domingo nos despedir. Ela estava inconsciente em uma cama de hospital. A boca murcha alimentada por sonda, os bracinhos frágeis e sem vida. O médico falou que 85% do cérebro estava comprometido. Fiquei angustiada de imaginar que tipo de vida ela teria se voltasse, se saísse daquele hospital. Uma pessoa que não gostava de se sentir presa nem pelo soutien. Só comprava blusas de gola aberta, para não sufocar. Passar o resto na vida vegetando em uma cama? 

Coloquei minhas mãos sobre sua cabeça, abri meus chacras e mandei toda energia de amor que consegui. Depois, me abaixei em seu ouvido e disse: “Vai vózinha! Vai descansar que essa vida é só ilusão. Tudo não passa de ilusão, de uma grande brincadeira. Você vai ver como eu tenho razão e vai ficar melhor”. Ela ainda esperou minha irmã voltar de viagem para se despedir. Morreu ontem de manhã, sem dar trabalho para ninguém, como ela queria. 

Hoje vamos enterrar minha avó. 

Eu, que aprendi a lidar com a morte de forma pragmática, só sinto alegria de ter participado de sua jornada. Teve uma vida dura, passou o final longe de quem ela amava. Mas cada um constrói sua história, vive sua própria batalha particular. Tenho apenas que ser grata de ter podido participar. 

Desenterrei a cápsula dela que compartilho aqui em baixo. É uma despedida. É o jeito que eu sei fazer. 


Minha avó voltou do hospital hoje à tarde. Há cinco anos lidamos com suas idas e vindas na UTI. Oitenta e cinco anos. Ela está velhinha. E é um pouco doloroso ver a vida se esvaindo dela. Nunca foi uma mulher brilhante. Simples e ignorante. Repleta de defeitos e preconceitos. Às vezes capaz de uma maldade desconcertante. Mas ainda minha avó. Voltou mais enfraquecida que de costume. Desorientada. Com um riso bobo no rosto. Não consegue levantar da cama sem ajuda. Passei a mão em seus cabelinhos grisalhos e encaracolados. Levei-a até o banho. Ela se sentou no banquinho e se deixou banhar. Ensaboei minha avó hoje à tarde. Sua pele, suas mãos, seu sexo. Seus seios flácidos. Ela se deixou ensaboar. Enquanto eu enxugava o rosto com a toalha repleta de seu cheiro, ela segurou minha mão. Levou-a aos lábios e me beijou.


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