sábado, 29 de janeiro de 2011

OZ

Sumi. Por uma semana. Foi uma semana intensa em todos os sentidos e existem coisas na vida que a gente simplesmente não consegue narrar em “real time”. Têm horas que a gente precisa dar uma folga e deixar fluir. Viver. Sentir. Chorar. Eu chorei pra caramba essa última semana. Bebês também choram quando nascem. Então eu vou escolher olhar para tudo o que eu vivi como um renascimento. Acho que é assim que a coisa foi mesmo. Ontem foi meu último dia no projeto. Eu sei que foi pouco tempo, mas amor não tem nada a ver com tempo. Tem a ver com disponibilidade. Sempre que um voluntário vai embora eles fazem uma cerimônia de despedida. O voluntário fica sentadinho em uma cadeira na porta e todas as crianças vêm, uma por uma, dar um abraço e se despedir. Eu assisti algumas despedidas durante esse tempo aqui, e já achava cruel só de assistir. Viver então... bem difícil de explicar. Ontem também tivemos a comemoração dos cumpleaños. Uma vez por mês eles comemoram o aniversário de todos os alunos daquele mês. Todos cantam parabéns, então as crianças quebram a piñata (um bonecão feito de jornal cheio de doces dentro), comem tortillas com suco e ganham presente. Foi uma festa, todos super excitados. Todo mundo tirando fotos. A criançada rolando no chão para pegar as balas. Depois colocarm a tal da cadeira na porta e me deram um lenço de papel (olha o absurdo. UM lenço. SÓ UM LENÇO!!!) E começou a delicada sessão de tortura feita por criancinhas guatemaltecas. Se vocês virem as fotos que Martin tirou para mim, iam entender. Em todos estou com uma careta horrível de choro. Meus alunos de Fuego. Um por um. Sussurrando baixinho no meu ouvido que me amavam e que estavam tristes, e que iam sentir minha falta. Alguns entraram duas vezes na fila. Outros seguravam meu rosto com suas mãozinhas sujas e me olhavam nos olhos. Como se não quisessem esquecer do meu rosto. Como se estivessem fotografando em suas memórias quem eu era. Pode ser só uma ilusão, mas eu prefiro pensar assim. Eles me perguntavam porque eu estava indo embora e me pediam para voltar um dia. Agora me explica. Como é que a gente vira as costas e vai embora de algo assim? Para a crueldade ficar ainda mais sofisticada, eles repetem a sessão no periodo da tarde. Na hora do almoço, Dona Elena me vestiu com um traje típico maya. Eu mal podia acreditar. Fiquei a tarde toda vestida com o traje. Priti depois me contou que nos 9 meses que ela está no projeto, essa é a terceira vez que ela vê isso acontecer. Que Dona Elena quase nunca faz isso. Foi uma honra tão grande. O traje maya é uma combinação de blusa e saia longa toda trabalhada a mão, com um tecido grosso e pesado. O figurino todo é muito caro. A saia tem um processo para ser dobrada e colocada e é amarrada com um cinto bem apertado na cintura. Demorei uns 15 minutos para me vestirem a roupa. Eu fiquei me sentindo uma princesa. Tem um quê de New Look da Dior. Talvez seja daqui que Dior tenha se inspirado. Então no final do dia eu fui torturada em trajes típicos. Pelo menos na segunda vez levei um pacote de lencinhos comigo. Como em um piscar de olhos se foram todas. Todas as crianças. Meus pequeninos de Fuego. E eu me vi no meio daquele pátio de terra batida vazio, vestida de princesa maya, com a cara inchada, o nariz vermelho e o coração minúsculo. Voltando para Antigua, Martin e Kim fizeram um longo HH. Fui para casa correndo para tomar banho e encontrei com todos os outros voluntários no restaurante dos garçons italianos gatos. Fizemos um jantar delicioso, cheio de risadas, fotos, piadas e apple martinis. Depois fomos para o El Muro na melhor das intenções de nos embebedar, mas o que aconteceu mesmo foi que eu, Hannah, Martin e Kim nos jogamos nos sofás da parte de trás do bar que estava vazia e afundamos em depressão. Eu conheci pessoas muito legais esse mês. Me diverti com todas elas. Mas os três foram meu centro. Minha base. E mesmo que eu tivesse as mesmas crianças adoráveis e remelentas, minha experiência aqui não seria um terço do que foi se eu não tivesse eles. Eu sou mesmo uma pessoa de muita sorte. Muito abençoada. Eu encontro família por onde eu passo. Eu tenho grandes amigos no Brasil, eu tenho verdadeiras irmãos. E dizem que se a gente encontra um assim, de verdade, já pode se considerar uma pessoa de sorte. Eu olhei para o meu lado e eu tinha três sentados nos sofás de um bar na Guatemala. E isso, é muito mais do que eu mereço. Mais cedo eu e Martin estávamos tentando lembrar como é que a gente tinha virado amigos (mais ou menos o que eu e a Y fazemos de vez em quando). Eu acho que esse tipo de pergunta não tem resposta. Amigos a gente não faz. Eles acontecem. Simplesmente acontecem. E se a gente deixa eles acontecerem, é muito bom. Quando a gente deixa eles acontecerem tudo é amor, e é aceito, e é incondicional. Os bares em Antigua fecham à 1h por lei. Então levamos Hannah até o ponto de taxi e voltamos os três à pé para casa. Em silêncio. Um atrás do outro. Eu ia olhando as pedras de paralelepípedo passando sob meus pés. Martim ia a frente, Kim atrás de mim. Não sei porque me veio a mente o caminho de pedras amarelas que Dorothy precisava seguir para encontrar o Mágico de Oz. Engraçado, mas eu não conseguia de jeito nenhum lembrar do final do filme. Então eu quebrei o silêncio. Soltei no meio da noite a pergunta mais surreal daquele momento. “Como é mesmo que termina o filme “O Mágico de Oz”? Claro que foi Kim quem me deu a resposta, porque ele é uma dessas pessoas que carregam uma pureza que eu sinto inveja. Ele é bom, positivo, otimista e faz tudo para que todos a sua volta estejam bem e felizes. Então ele começou a me contar o final do filme, com riqueza de detalhes. Contando como se conta para uma criança um conto de fadas. Me ajudando a lembrar como é que Dorothy voltou para casa. Saiu daquele mundo colorido e voltou para o Kansas. Hoje à tarde eu fiz aquele caminho pela última vez. Com os paralelepípedos passando debaixo dos meus pés. (Eu vou omitir a cena de despedida que eu e Martin tivemos na porta do Raibow Cafe hoje, porque tem coisas que são preciosas e eu guardo comigo). Eu estou voltando para casa. Na minha cabeça eu ouço a voz de Kim contando o final do filme. E a última frase, que essa eu me lembrava. “Não há lugar como nossa casa.”


*Quarta-feira amanheço no Brasil. Volto a escrever de lá. Só um pouquinho mais de silêncio por aqui.

sábado, 22 de janeiro de 2011

A ÚLTIMA BOLACHA BONO DO PACOTE

Yeahhhh! Ontem foi um daqueles dias que fazem tudo valer a pena. Nada de especial. Mas tudo ao mesmo tempo. Minhas turmas estavam incríveis. Alegres, ativas, super participativas. A gente fez um projeto de arte que ficou um arraso. Decoramos copinhos de iorgute com vários tipos de materiais. Papéis picados, lantejoulas, glitter, penas, cascas de lápis. Depois colocamos algodão dentro e plantamos grãos de feijão. Estudamos plantas essas semana. Ficaram lindos, e as crianças piraram. Fora isso foi uma carga de amor tão grande que eu tinha vontade só de congelar o momento e viver ali para sempre. Irma estava meio doentinha, sentou no meu colo e ficou um tempão olhando nos meus olhos e acariciando meu braço. Danilo ficava pulando e esticando os braços para agarrar meu pescoço e me dar beijos. Esbin veio em segredo e me deu um anel de presente. Um desses aneis de brinquedo que vinham nos doces quando eu era pequena. E Hector como sempre me dizendo o tempo todo “És buena, seño. És buena.” Tanto amor. Tanto. Eu fico pensando se é por isso o que os professores passam em suas rotinas. Dias em que a gente pensa que é um fracasso, para se seguir outro em que nos sentimos a última bolacha Bono do pacote. Existe uma satisfação e uma completude em ensinar que eu não sei muito bem como descrever. Quando você consegue acessar uma criança, quando você consegue ver nos seus olhinhos o pensamento se formando, o ensinamento assimilado. A maneira como o rosto de uma criança se ilumina quando ela aprende algo é de uma satisfação viciante. Melhor do que comprar uma carteira nova da Prada, melhor do que comer sorvete de Macadâmia da Haggen-Dans ou tomar caipirinha de Lichia do Balcão. Melhor do que sessão de massagem e ofurô. Ouso a dizer até que é melhor do que comprar 5 pares de sapatos de uma vez. Ok, estou usando as futilidades como piada. Mas deu para entender. As crianças estavam todas encucadas, porque Jack (o novo voluntário) começou com a gente essa semana e geralmente isso significa que o antigo voluntário vai embora. Então todos estavam apreensivos em saber se eu estaria lá na Segunda-Feira. Sim, eu estarei. Mas é a última semana. Não gosto nem de pensar. Está aí uma coisa que vai ser difícil. Me despedir dessas crianças na Sexta-Feira. Só de escrever aqui meu coração já se contrai todo. Como é que é possível? As coisas serem tão intensas em tão pouco tempo? Depois do dia maravilhoso de ontem fui com meus dois melhores amigos daqui, Martin e Hannah, jantar. Chamamos Lucy, minha roomie, também. Tivemos um jantar divino em um restaurante argentino daqui. Carne de primeira, regada a um maravilhoso Malbec de Mendoza. Diz aí? A vida não é uma coisa boa? Esticamos para um bar onde encontramos os outros voluntários. Dei tanta risada. Dias incríveis esses. Ah, claro que preciso contar. Finalmente fiz minha primeira viagem de Tuk-Tuk na Guatemala! Eu gritava de emoção dentro e Martin só balançava a cabeça. Tuk-Tuk é um meio de transporte bem popular por aqui. É um triciclo motorizado com uma carroceiria e eles estão por todos os lados. Sou apaixonada por eles. Toda vez que vejo um tiro uma foto. Já tenho centenas, mas continuo fotografando só porque não consigo evitar uma excitação totalmente infantil quando vejo um. Eles dirigem como loucos pelas ruas de paralelepípedos de Antigua. Não é muito difícil ser atropelado por um. Ontem a gente pegou para chegar até o restaurante porque Martin estava perdido e fazendo Lucy e eu andar em círculos e definhar de fome. O negócio balança tanto. Mas tanto. Me senti em um pau-de-arara (não que eu tenha andado em um alguma vez). Mas foi a mesma sensação de quando eu fugi de Jericoacoara na carroceria de um caminhão pelas dunas. Eu tenho achado minha vida du caralho! Vulcões, tuk-tuks e crianças remelentas que dizem que me amam. Vou até colocar uma foto aqui embaixo das minhas paixões motorizadas. Se eu morasse aqui, compraria um só para me exibir todos os dias.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

DESENVOLVENDO

Nossa, hoje estou tão cansada, que fico pescando enquanto escrevo email. Melhor poder de síntese do mundo. Sono. Então o post també vai ser bem sintético (o que não é nada o meu estilo. Escrevo capotando de sono, mas escrevo.) Hoje metade da minha turma da manhã faltou. Me deu uma tristeza. Um misto de culpa e mágoa. Eu sei que as crianças ficam doentes o tempo todo, porque são desnutridas, a temperatura mudou. Então é um festival de febre, tosse e dor de estômago. Mas metade da sala? Comecei a me sentir responsável. Eu sempre me sinto responsável. Comecei a pensar que se, eu estava tão rouca semana passada, talvez estivesse com algum vírus que não se manifestou em mim porque eu sou mais forte. E comecei a tremer com a idéia que eu possa ter passado algo para as crianças. Um outro lado meu estava apenas no velho “mode-auto-piedade”, achando que as crianças não tinham vindo porque detestam minhas aulas e não querem me ver. Dramma queen, eu sei. (Além de egocentrino no último imaginar que eu sou o centro das atenções das crianças.). Mas o que eu adoro nos dias e na vida é que eles são ciclicos. Momentos vêm e vão e eles tendem a se sobrepor. À tarde, Esbin me trouxe uma flor e Hector me repetia a cada cinco minutos, “És buena, seño. És muy buena.” É muito legal ouvir de alguém que a gente é boa. Nem que seja de alguém com 6 anos de idade. Coisas que você descobre sobre a Guatemala somente quando está borocoxô. A diferença entre um País de Terceiro Mundo e um País em Desenvolvimento. Eu sempre torci o nariz para essas classificações porque já estive em buracos do Brasil que me fazem ficar cética com esse papinho de “em desenvolvimento”. Soa como se fosse um prêmio de consolação. De qualquer forma, lá estava eu na “La Bodegona”, o maior e principal supermercado  da cidade ( que na verdade tem cara de mercado de bairro do Capão Redondo. Todo os outros comercios são “tiendas”, pequenas vendinhas de esquina (pequenas mesmo) com um pouco do básico e grades do chão ao teto antes do balcão. Só para a gente lembrar que não está mais no Kansas, Dorothy! Eu fui vasculhar todas as prateleira de chocolates, doces, porcarias para preencher meu vazio existencial com açúcar e gordura trans. Acontece que a indústria é tão atrasada que o que existe nas prateleiras são uma infinidade de produros duvidosos. Umas balas estranhas, bicoitos duvidosos e os chocolates parecem como velas aromáticas  do que para comer em si. A oferta de produtos e a variedade é deseperadora, e as embalagens  são enormes para atender as famílias numerosas e garantir preços mais acessíveis. Nada com cara apetitosa, de se melecar e lamber os dedos. Daqueles que de tão doces, cortam a língua e atraem formiga se você esquecer em cima do tambo da pia. É estranho ver essas diferenças que a gente nem imaginava que sentiria. Me dá a sensação de viver no passado, numa época em que o mercado não era aberto e a industria nacional primária. A opção de marcas é mínima, os importados quase nulos. E a burocracia, a gente sente no ar. Mas isso é porque o olfato está apurado para esse tipo de coisa. A gente está se desenvolvendo, mas com duas vias assinadas e registradas em cartório. Acabei comprando um estoque de lanchinhos para segurar as ondas de hipoglicemia. Acho que estou ganhando peso. Dormir agora. Rezar para meus alunos não fugirem de mim amanhã. Parar de digitar de olhos fechados. A noite já veio com mais notícias de apoio e a gente vai descobrindo que talvez não tenha sido tão dura assim e que mais gente pense como a getne. Vou decidir o que fazer no final de semana. Talvez algo que envolva muita adrenalina. Talvez eu apenas passe mais tempo em Antigua (fico a semana inteira no esquema casa-projeto-projeto-casa). Talvez seja uma boa idéa explorar a cidade um pouquinho.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

SILÊNCIO

Ando folgda. Confesso. Agora que tem outro voluntário, larguei todo o planejamento de aulas nas mãos dele. Virei as costas e fui tomar uma cerveja. Verdade. Fui mesmo. Estou tão cansada que todo dia quando sento para escrever aqui saem milhões de errinhos. Vou ver depois, mas dá uma preguiça ficar consertando. O teclado do netbook também é estreito, então cansa mais o punho. Dá preguiça e eu fico relaxada. Ando com uma fome danada também. Tive alguns casos de hipoglicemia (o que não me acontecia há algum tempo). Então agora eu estou parecendo uma gorda carregando comida para todos os lados. Sempre com alguma barrinha, chocolate, salgadinho, fruta. Qualquer coisa para evitar que eu comece a tremer como quem tem Parkinson. Não contei, mas tive uma no meio da trilha do Acatanango. Foi por estupidez. Estava andando há umas 3 horas já, só com o café da manhã que tinha sido antes de sair de Antigua. Bingo. Detesto quando o meu corpo me faz fraca. Minha turma anda insandecida essa semana no projeto. É um tal de se baterem, não sei mais o que faço. Hoje José deu um soco no estômago de Irma. Tudo bem que Irma não é fácil. Mas a menina estava quase vomitando. Ficou tossindo e cuspindo. Em seguida foi Danilo que virou um tapa em Marisol. Juro. Cinco minutos depois. Eu até entendo que essas crianças acabam lidando com agressividade porque é o modelo de comportamento que recebem. Mas que loucura. E me consome tanto. Dai vira assunto para os internos. A minha interna é a Phoebe, que é uma garota novinha, muito boazinha e cheia de boas intenções. Mas princesinha demais. Sabe aquelas pessoas que querem sempre agradar, que não conseguem ficar em uma posição em que não sejam o centro das atenções e amadas por todos? Tipo isso. Daí quando acontece um incidente grave como esse ela tem tanto medo de ser dura com as crianças e eles não gostarem dela, que ela passa a mão na cabeça e deixa eles fazerem o que quiserem. Vê se tem cabimento? Neguinho sai espancando os outros, começa a chorar porque vai ser levado para os internos e chegando lá, em vez de ter uma conversa séria sobre seu comportamento, a interna pega no colo, dá beijinho, abraça, chacoalha, mima bastante, e ainda fica perguntando se a criança “está brava com a professora”!!! Depois vem com discurso passivo-agressivo de que “a gente precisa entender que essas crianças passam por tanta coisa, eles sofrem tanto, tadinhos, a gente não pode ser tão dura com eles”. (Tão dura? Até parece que quem estava esbofeteando as crianças era eu!) Ah! Eu também vou sair esmurrando o povo para ser paparicada! Mas hoje falei para ela, que mimar aquelas crianças era egoísmo dela, que ela estava mais preocupada com os sentimentos dela do que com a formação do caráter deles. E que eu achava que o comportamento dela era nocivo para as crianças e enquanto eu estivesse aqui eu ia proteger meus alunos dela. Ai, ok! Eu preciso ser um pouco menos dura com os outros. Pode até ser que eu tenha pegado um pouco pesado com a rainha do baile. Mas engraçado que ultimamente não me sai da cabeça aquela frase do Martin Luther King: “History will have to record that the greatest tragedy of this period of social transition was not the strident clamor of the bad people, but the appalling silence of the good people.” Eu tenho sentido uma responsabilidade imensa ultimamente de não me calar quando considero que algo está errado. Não estou falando especificamente da Guatemala ou desse projeto. Mas de posicionamento de vida. Claro que todo mundo gosta de agradar. Todo mundo gosta quando gostam da gente. Ninguém quer ser considerado “encrenqueiro”. Mas silêncio eu guardo na minha alma para ocasiões especiais. De resto eu falo. Porque calar, para mim, é cumplicidade.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Tem épocas em que eu fico entediada. Às vezes pessoas me entediam. A gente recebeu uma avalanche de novos voluntários essa semana. Deu uma preguiça. Uma molecada de vinte e poucos, cheia daquela atitude politicamente correta que eu detesto. Alguém devia acabar com o politicamente correto. Todo mundo fazendo um esforço danado para ser legal, e querendo mostrar o quão generoso é por estar fazendo isso. Fazendo uma força para ser low profile. E aquele discurso todo no ar de “Oh, as crianças são demais! E elas passam por tanta coisa e tem tanta fome.”. Hoje estava todo mundo tirando foto no intervalo. Ensaiando pose pra sair bonito no Facebook. Ah, sei lá. Eu adoro fotografar. E já tirei bastante fotos das crianças. Mas, talvez seja meu olhar, nas minhas fotos elas parecem todas um pouco tristes. Eu não consigo ver essa coisa incrível e maravilhosa que todo mundo vê. Para mim são crianças, com vidas horriveis, e pobres. Mas que também enchem o saco às vezes, são irritantes, fazem bagunça, precisam de limites. Eu não vejo muita coisa de diferente entre elas e as crianças que costumo ver em escolas particulares de São Paulo. Algumas são bonitas, outras feias. Elas fazem bagunça, correm, brigam. Fazem muito barulho. Criança. Eu não postei nenhuma foto ainda. Também não tenho nenhuma abraçando crianças, ou carregando criança ranhenta no colo.  Nada contra, é só minha opção. Eu estou curtindo tanto fotografar que não dá mais vontade de ficar na frente da câmera. Não sei bem como me portar. Outro dia eu soltei dentro da van, “Essas crianças não tomam banho, né!?”. E todo mundo me olhou como se eu tivesse soltado uma frase de racismo imperdoável. Como se eu fosse a pessoa mais horrível do mundo. Ok, eu sou louca pelos meus alunos. Sou louca mesmo por eles. Pulo como uma leoa para defendê-los. Passo o dia abraçando, beijando, apertando. Eles pulam no meu colo, e me beijam e apertam. Mas quando eu chego em casa a primeira coisa que eu quero fazer é tomar banho. É simples. É natural. O fato de serem crianças, e de eu amar todas elas, não muda o fato de que elas fedem. São sujas, encardidas. Os narizes escorrem. É o que é. Quem disse que para uma criança ser fofa, precisa estar de banho tomado com lacinho na cabeça e roupa de marca? Se fossem crianças ricas que estivessem fedendo, tudo bem dizer que elas não tomavam banho? O politicamente correto para mim é a coisa mais nociva hoje no mundo. Faz a vida ficar maniqueísta e reduz todos os valores a um conceito simplista e superficial. Eu gosto demais dos tons de cinza. Bom, então hoje estava todo mundo posando para foto de Facebook no recreio. Escolhendo as crianças com as roupas mais exóticas e os cabelos mais desgrenhados. Afinal, hoje em dia a gente precisa de provas de que é uma boa pessoa. Eu sou old school. Ainda acho que vale mais a atitude do que um perfil em comunidade virtual cheio de amigos. Pelo menos o meu novo voluntário é legal. Um menino, de 21 anos, inglês. Está meio assustado e capenga no espanhol, mas hoje a tarde deixei a classe praticamente inteira na mão dele. Até que se saiu super bem. Tem sido um alívio. Poder dividir as tarefas. Quatro mãos para escrever em caderno. Uma benção. Deu até para sentar e tomar uma cerveja hoje depois da aula. Até agora a rotina estava insana. Acordava às 6h, café da manhã, ia para o projeto. Aula. Trabalhava no intervalo do almoço. Aula. Voltava para Antigua trabalhando na van. Tomava um café correndo, ia para a aula de espanhol e voltava em migalhas para casa. Banho, jantar. E sentava no meu quarto trabalhando mais até às 23h. Pensar que eu saí de casa, viajei até aqui, para passar por tudo isso deliberadamente. Às vezes me pergunto porque estou me punindo. Mas na verdade, apesar do que pode parecer a primeira vista, estou vivendo uma das grandes experiências da minha vida. Amando. Muito. Cada segundo. Às vezes tenho a sensação de que eu poderia levar essa vida para sempre (é só às vezes, depois passa). Não acho que sou uma boa professora (e secretamente eu temo que assim que eu for embora eles descubram que tudo o que eu tentei ensinar foi inútil), nem penso na questão do ofício em si. Só que parece que tudo o que eu faço o dia inteiro faz muito sentido. E vamos combinar que isso é uma tremenda novidade na vida de uma pessoa que passou o último ano carregando mochila e entrando em museu. Quando eu era atriz eu sabia que você não pisa no palco sem que seu personagem tenha um propósito muito claro para si. Tudo o que um ator deve fazer em cena, deve ter um motivo, mesmo que a platéia não veja. É o que faz o personagem ficar vivo, inteiro. Aqui estou viajando, estou explorando a cidade, fazendo até coisas turísticas. Mas, diferente do que fiz até agora, eu sei o que estou fazendo. Não o projeto, não as aulas, ou as crianças. Algo além de tudo isso. Que a platéia não vê (e nem precisa), mas que me faz inteira e viva. Ainda bem que eu não preciso de nenhuma foto no FB para me convencer disso.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

DRI E O VULCÃO

Eu subi o vulcão. Subi e ainda dormi lá. Entrou para minha lista de lugares-exquisitos-onde-já-dormi. Ao lado do deserto, do aeroporto e daquele hostel estranhérrimo em São Luis do Maranhão. O Acatanango é o segundo maior vulcão da América Central. Mas o mais difícil de escalar. Só me deram essa informação quando eu já estava quase no summit, congelando de frio e me perguntando se o gosto que eu sentia na boca era de massa encefálica. Quando eu fechei o pacote eu só gostei da idéia de dormir em cima do vulcão. Mas o Acatanango é pauleira. Martin também topou a roubada. Ele participou do “Volcano Challenge” (uma competição meio brincadeira que rola aqui onde os participantes devem escalar uns cinco vulcões na redondeza.) Ele já tinha escalado o Pacaya (peace of cake), o Santa Maria, o Água, o Tolimã e subiu o Acatanango comigo no sábado. Falou que nem dava para comparar. O que faz o Acatanango tão punk nem acho que sejam os 3900m de altura. A gente foi bem devagar, parando para se adaptar a altitude, então eu quase não senti efeitos. O que matava mesmo era o solo. Uma areia preta estranhérrima, que levantava uma poeira danada. O primeiro trecho já me arrebentou com os pulmões e eu duvidei que conseguisse. Começamos a trilha às 10h30 (achei meio tarde) então o primeiro trecho que era descoberto, bem ingreme e escorregadio foi embaixo de um Sol de rachar. Como a gente ia acampar lá em cima, cada um precisava carregar a mochilona com sleeping bag, mattress, utensilios, roupas térmicas e extras, primeiros socorros, kit básico de higiene, água, comida. Isso significava 15Kg nas costas. Imagina subir uma ladeira de areia fofa, com inclinação maior de 45o com 15Kg nas costas! Isso considerando que eu tô pesando 52Kg, então 15Kg dá uma boa interferida no meu centro de gravidade. Vou confessar que o me fez continuar e não voltar ao pueblo e contratar um carregador foi um menino de 9 anos de idade que estava no grupo. O pai do moleque é um escritor trash estadusinense. Aqueles tipos cabeludos e vegetarianos que parecem personagem de filme dos Irmãos Coen. A gente começou a trilha, o cara disparou numa passada tão insana que nem os guias locais (que sobem aquele vulcão todos os dias nos últimos 15 anos) alcançaram o cara. Detalhe, o largou o filho pra trás. Assim. Sem avisar ninguém. Na maior cara de pau. O molequinho de 9 anos, carregando uma mochila do tamanho dele (tudo bem que o guia estava com a maior parte do peso da mochila dele, mas se eu estava carregando cerca de 1/3 do meu peso, aquele moleque estava com certeza carregando 1/2). Então o guia, com toda sanidade do mundo, fez o papel de pai e foi acompanhando o menino. Toda vez que eu amaldiçoava o peso nas minhas costas eu pensava no moleque. Muita vergonha né? Chamar um carregador quando tem uma criança fazendo melhor do que você? Então eu pensava, “se ele consegue, eu consigo”, e seguia. Nossa passada acabou ficando muito mais lenta por causa dele. Então eu e Martin dávamos uma puxada na frente, parávamos em algum ponto com vista bonita, descansávamos, recuperávamos o fôlego até o guia e o moleque nos alcançarem. E foi assim. Durante as 7 horas e meia que demoramos para subir o vulcão. (Nossa subida estava programada para 5 horas ao todo). Quando chegamos a uns 3500m o frio era inexplicável. Vento, a gente no meio das nuvens. Minhas mãos congelando (para variar eu tinha esquecido as luvas). O menino estava enrolado em posição fetal quase todo roxo, e o pai dele tinha desaparecido completamente. Não estava em nenhum dos postos de descanso. Começava anoitecer (não é uma boa idéia andar por aquelas trilha a noite) e a gente ainda precisava chegar ao summit para ver se achávamos o maluco. Eu e Martin subimos, enquanto o guia ficou com o menino e nossas coisas. Só para ter uma idéia da dificuldade do trecho, foram 35 minutos para subir 400m. Insano! Assim que coloquei o pé no topo do vulcão, bem na beirada da cratera adormecida há mais de 100 anos, os raios laranjas daquele dia que se ia me atingiram a cara. O Sol, quase inutil em sua temperatura, mas imponente de luz, sumia na altura dos meus olhos, enquanto eu içava o que sobrava do meu corpo sobre aquela imensidão de terra vulcânica. Nessa horas a gente não fala. A gente não tira fotos. A gente mal respira. Não havia frio, nem fome, nem músculos queimando. Éramos eu e o vulcão. E minha certeza de que a vida existe exatamente para momentos como aquele. Nós sentamos em silêncio por alguns minutos. Ou talvez tenhamos ficado de pé, já nem sei direito. E voltamos para encontrar o guia, o garoto abandonado e seguir para o acampamento. Esse foi com certeza o pior trecho. A noite caiu rápido, não tínhamos luz. O caminho era por um desfiladeiro escorregadio e muito íngrime. Eu escorregava, minha mochila me puxava para baixo. Me deu pânico. Para ajudas começou a nevar. Quando eu já estava imaginando equipes de busca para resgatar meu corpo hipotérmico de algum burado, avistamos a fogueira do acampamento e um barulho estrondoso em seguida. Uma luz iluminado todo o céu. Como uma explosão. Todos nós demos um salto para trás e um grito. Era Fuego, o vulcão vizinho que tem estado mega ativo nos últimos dias. Cuspindo fogo para os céus e derramando lava pelo cume num dos mais belos espetáculos que eu já vi da natureza. Sentamos em volta da fogueira, todos olhando para Fuego. Jantamos arroz com legumes e chá bem quente. Contamos histórias. O garoto coitado imaginando que o pai ia ser encontrado morto. A gente deu risada e fizemos brincadeiras para ele dar risada. Capotei na barraca em seguida, sendo acordada a cada meia hora com o rugido daquele vulcão ao lado. Acordei também com passos de coiotes rondando a barraca (talvez sentindo o cheiro das barrinhas de chocolate na minha mochila). E acordei enfim para vomitar, com o meu corpo incapaz de processar a altitude, o ar rarefeito, as paisagens, a voz de um vulcão. De manhã comemos fruta e granola em silêncio. Afinal o único que falava o tempo todo era Fuego. O pai do menino ainda desaparecido. Foi encontrado depois e levado para a base. Estava todo enfesadinho. Eu fico pensando, porque alguem faz isso? Todo mundo sabe que não se pode afastar de um grupo quando faz hiking. Que deve-se permanecer sempre as vistas do guia. E todo mundo sabe que o mais fraco dita o ritmo do passo. Eu não entendo porque uma pessoa leva o próprio filho para escalar seu primeiro vulcão, sai correndo na frente e acaba perdendo tudo. Ele não estava lá quando o menino caiu, nem quando escorregou. Não era a mão dele que estava estendida quando ele precisou de ajuda. Não estava todas as vezes que ele via algo maravilhoso e chamava pelo o pai para compartilhar. Mais importante, não estava para ver que seu filho conseguiu. Chegou até o alto. O cara estava tão mais preocupado em provar alguma coisa para si mesmo, que perdeu um do maiores momentos que pai e filho podem ter juntos. Ontem voltamos no final da tarde para Antigua. O cara na van falando um monte de besteira e eu me segurando no banco de trás. Martin fazia meditação chinesa para não voar no pescoço do babaca. Na agência, ele resolveu virar bicho. Foi para cima do proprietário, acusando o guia e todos. Daí não aguentei. Baixou a filha da minha mãe novamente. “Escuta aqui, eu tava quieta, mas não sou o tipo de pessoa que fica quieta quando vê injustiça. O senhor foi irresponsável, egoísta. Se afastou do grupo, colocou a minha vida, do meu amigo, do guia e do seu filho em perigo. Não é trabalho do guia ser babá do seu filho, e o senhor simplesmente virou as costas e não estava lá para ver se ele estava vivo ou morto, com fome ou com frio, nem quando ele te chamava no meio da trilha para te mostrar algo. O senhor estava tão preocupado em ser o primeiro a chegar sei lá aonde, que não viu vulcão, não viu caminho e não viu nada. Se se perdeu é porque quis. Todos nós, que ficamos acompanhando o SEU filho, chegamos no acampamento direitinho, ficamos aquecidos a noite e fizemos todas as refeições. Se o senhor acha que é tão melhor do que todo mundo aqui, contrate um guia particular da próxima vez e uma babá para seu filho, porque não é trabalho do guia fazer o que ele fez nas últimas 24 horas. Quando você faz hiking em grupo, você permanece em grupo. O que o senhor fez foi irresponsável e errado.” É assim. Nem que seja uma cusparada de fumaça no ar, tem gente que nunca fica dormente. Mas as vezes a gente precisa escalar todo um Acatanango para ver Fuego eclodir.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

ERUPÇÃO

Hoje foi lava para todos os lados. Eu tive um incidente essa semana com os alunos. No intervalo eles recebem uma fruta. É uma coisa meio valiosa para eles, já que para alguns acaba sendo parte da pouca comida que recebem por dia. Algumas crianças pedem para guardar a fruta e pegar no final da aula porque se transforma em seus almoços. Meio punk. Então Melvin veio para mim e mentiu que tinha guardado a fruta, e acabou levando a fruta de outro aluno, Danilo. Danilo, obviamente ficou arrasado. Foi uma confusão até eu descobrir a mentira. Chamei Melvin na frente da classe inteira. Todos estavam indignados porque Melvin tinha mentido. Então eu dei um grande sermão de como mentira era uma coisa feia, que não era um comportamento aceitável e que, por causa da mentira dele, o colega tinha ficado com fome. Perguntei se ele achava que aquilo era justo. Ele concordou que não. E falei que a mentira nunca era a melhor opção porque a verdade sempre vinha a tona. E que eles deviam ser honestos e dizer sempre a verdade, porque a verdade não prejudicava ninguém, e blábláblá. Para consertar seu comportamento eu disse que hoje Melvin deveria dar sua fruta para Danilo. Ele ficou muito contrariado, mas sabia que estava errado, e toda a classe ficou mega satisfeita. Hoje na hora do intervalo, todos estavam ansiosos para que a “justiça” fosse feita. Eu fiz Melvin pegar seu pedaço de abacaxi e entregar a Danilo. Muito bem. Alguns minutos depois Kim vem me perguntar se Danilo era meu aluno, que ele estava chorando muito e que Sarah (uma das internas da GVI) estava com ele. Fui imediatamente falar com Sarah. Só que ela me dispensou e disse que estava tudo sob controle. Eu insisti, disse que tinhamos tido um incidente (e Sarah só aparece no projeto uma vez por semana), mesmo assim ela me deixou de fora. Em seguida passa ela com Danilo e dá uma laranja para Danilo. Então eu já pulei na frente, perguntei o que tinha acontecido. Resumo da ópera, depois de tudo, Melvin foi atrás de Danilo no intervalo e tirou o pedaço de abacaxi à força. Danilo ficou aos prantos e o que a alienada da interna faz? Passa a mão na cabeça de Melvin e dá uma outra fruta como prêmio de consolação para Danilo. Eu virei bicho. Não apenas porque ela estava me desautorizando completamente. Mas porque aquilo era muito injusto. Então ela vem para mim e diz, “we don´t punish with fruits. It´s our policy, because they are always so hungry.”. Cara! Naquela hora eu fiz juz ao meu DNA. Sentei com a garota e falei tanto. Mas tanto. Que a coitada nem deve ter encontrado o caminho de casa. “Eu sei que a gente não deve usar comida como castigo, ainda mais com o histórico que essas crianças possuem. Seria desumano se eu fizesse algo assim. Mas eu não estava usando comida como castigo. Eu estava fazendo com que Melvin reparasse uma falta grave, especialmente porque essas frutas são algo tão valioso para eles. Eu entendo que eles sentem fome. Mas fome não pode ser desculpa para mentira, trapaça e falta de caráter. O que você ensinou hoje para Melvin foi que está tudo bem mentir e trapacear por fome, porque vai ter sempre alguém redimindo os danos que ele causar nos outros. Repondo com uma outra fruta como prêmio de consolação. E isso pode até ser apaziguador para SUA consciência. Mas um dia você vai embora desse país, e essas crianças vão continuar passando fome. Isso não vai mudar. Então eu entendo que eles tenham fome, mas caráter e valores para mim vêm primeiro do que fome. E eu realmente não dou a mínima se é política da GVI ou não. Eu acho que agi corretamente e agirei da mesma maneira se passar por essa situação novamente. Eu sei que sou uma pessoa imperfeita. Eu cometo erros, vou cometer muitos erros. Mesmo que eu tivesse errada (o que eu não acho que era o caso) você nunca poderia ter passado por cima de uma decisão que eu tomei na frente da minha sala. Você deveria ter me chamado, resolvido entre adultos. E nunca me desautorizado na frente dos meus alunos. Eu perdi minha voz para ter controle dessa sala. Fuego é a sala mais comportada e disciplinada desse projeto, e isso não é à toa. Você nunca poderia ter aparecido do nada e me desautorizado na frente das crianças.”. Virei bicho! A garota só balançava a cabeça e pedia desculpas. Cara! Eu acho que tudo tem sempre sua sombra. Sempre que você se depara com algo incrível e maravilhoso, procure pela sombra. Porque aí sim você vai ter certeza da realidade. Esse é um projeto maravilhoso e eu certamente aconselharia milhões de amigos a passarem por essa experiência pelo menos uma vez na vida. Mas ninguém está se iludindo aqui. (e com aqui eu me refiro a mim mesma). O único motivo que eu estou fazendo esse trabalho voluntário é porque eu acredito que esse é um direito dessas crianças. Que as pessoas têm o direito de receber ferramentas para mudarem suas vidas. Eu não tenho a pretensão de mudar o mundo. Não sou tão megalômana assim. E eu tenho certeza de que se, em 10 anos, eu topar com uma dessas crianças com uma arma na minha cabeça, eles não vão pensar duas vezes em puxar o gatilho. Detesto o politicamente correto. Espero que eles sejam felizes e que esse trabalho faça alguma diferença em suas vidas, que proporcione outras possibilidades. Do fundo do meu coração. Mas eu não sou ingênua. Não sou uma patricinha qualquer de algum país de primeiro mundo colocando fotos no Facebook ao lado de exóticas crianças remelentas guatemaltecas. Não vou tapar o Sol com a peneira só porque é mais fácil para mim dormir à noite. Afinal, os beneficiários devem ser as crianças e não os voluntários. Se os voluntários se beneficiam, bônus. Mas não é o maior propósito. Pelo menos não deveria ser. Então não. Eu não vou aceitar que nenhuma garota inglesa passe a mão na cabeça de uma criança com comportamento errôneo só porque ela está com dó da vida de terceiro mundo que ele leva. Mau caratismo não tem raça, cor, credo, classe social ou localização geográfica. E se Melvin me considerar a Bruxa Má do Oeste, isso vai me deixar muito chateada porque eu gosto de todas aquelas crianças, mas eu estou aqui para ajudá-las e não para fazê-los se apaixonarem por mim. Eu já tenho bastante gente que me ama lá em casa. Não preciso vir até a Guatemala para me convencer de que sou uma boa pessoa. Se depois de tudo, eu ainda for amada. É como eu disse. Bônus. E até onde eu sei, a vida é cheia de bônus.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

SEM FÔLEGO

Vou confessar que não estou mais contando os dias. Nada mais de contar dias por aqui. Apenas vivendo a rotina. Estou tão integrada que parece que eu vivo essa vida desde sempre. Acordo de manhãzinha, tomo café com minha host family. Vou caminhando até o café que é nosso ponto de encontro. Dou aulas a manhã toda. Já conheço todos aqueles rostinhos, nomes. Suas personalidades. Almoço com o resto do grupo, bate papo na mesa. Aula a tarde. Volto para Antigua trabalhando na van para aproveitar o tempo. Tenho um melhor amigo (Martin). Faço planos para o final de semana. Tudo muito confortável dentro do desconforto. O chuveiro nunca fica quente. Posso tomar banho de uma hora e o espelho nunca fica embaçado. Descobri um padrão no café da manhã que minha host mother serve. (Terça é o dia das panquecas. Adoro panquecas! ...isso quer dizer que amanhã tem pasta de feijão denovo...) Eu sinto mesmo que estou vivendo essa vida há muito tempo. Por isso foi bem natural estender por mais uma semana minha estada por aqui. Minha garganta só que foi para o saco. Ontem eu até chorei de desespero na hora do almoço. Terminei o período da manhã COMPLETAMENTE afônica. Zero. Nada. Necas de pitibiriba. Nunca me senti tão inútil na vida. Eu tentava falar, fazia um esforço tremendo, e nada de sair voz. Aquele bando de criança com seus olhinhos curiosos olhando para minha cara: “o que essa estrangeira maluca está querendo dizer???”. Fazia mímica, apontava, batia palmas. Um desastre. Me senti um pouco abandonada também. Estamos com poucos voluntários (já que os novos voluntários só começam no projeto semana que vem), eu até entendo. Mas sempre falaram que estariam ali para me ajudar e etc. E no final o que rolou foi que duas vezes as internas entraram na sala, falaram dois minutos com as crianças para explicar um exercício e foram embora. Juro. Mesmo sem emitir um som, eu tive que dar conta da sala sozinha. Desesperador. Por um lado foi legal porque me ajudou a inverter o placar. As crianças estavam tão assustadas de ver “la maestra enferma”, que se comportaram como anjos iluminados. Parecia que tinham tomado ritalina. Extremamente comportatos, atentos. Super quietos. E ainda se policiavam entre si. “Shhhh! Cala-te! Mira la maestra!”. São lindinhos!!! Hoje que minha voz estava melhorzinha enchi todos de beijos e falei o quanto estava orgulhosa deles. (Eu disse melhorzinha! Eu ainda estou soando como uma criatura de ficção científica quando eu falo.). Coisas curiosas que a gente descobre somente quando perde a voz na Guatemala. Aqui as famácias também parecema casa da Mãe Joana. Você fala apenas “Porfavor” com a voz rouca e a balconista já vem com um antibiótico e um antiinflamatório. Nada de receita. Daí quando você explica que quer apenas uma pastilha ou um spray, elas ficam super decepcionadas. Outra coisa que a gente descobre, sabe aquele chazinho-receitinha-caseira-da-vó? Aqui é chá de camomila com? Com? Com? ... Chocolate! Te juro! E ainda vem mais alguma coisa muito sinistra misturada. Dona Helena (nossa cozinheira e líder comunitária) me mandou ontem uma xícara gigante quando viu meu estado no almoço. Tampa o nariz e engole (como qualquer outro remédio caseiro de vó). À noite fiz um mega chá de limão atolado no mel. Hoje também. Receita caseira por receita caseira, vou na que é mais gostosinha. Agora à noite começou uma tosse chatérrima. Sinal de que está curando. Acho bom. Amanhã é dia de cerveja e poperô em espanhol. Acha que eu vou perder uma coisa dessas? No way. Dentro da minha rotina, dessa vida que eu nunca tive mas sempre tive, qualquer tempinho vale para pegar fôlego. Toda Friday é Funday.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

DIA 6 E 7

Voltei do final de semana tão empolgada. Só que essa semana não está sendo nada fácil. Tanto que nem deu para escrever ontem e hoje vai precisar ser um fast post porque aqui já está bem tarde e amanhã começa bem cedo. Estou afônica. Completamente sem voz. Como isso aconteceu? Um pouquinho de friagem voltando do Lago Atitlán e me mudaram de sala ontem. Semana passada a gente ficava em uma sala que era fechada. A única fechada. Todas as outras funcionam em uma espécie de varandona de madeira com metade da parede aberta. Mudaram minha turma para uma dessas. Por um lado tempos mais espaço, o que é legal porque agora consigo circular entre as carteiras. Mas por outro o barulho é terrível. Vaza barulho da rua, das galinhas do vizinho, das outras turmas, das crianças cantando. Daí é lógico que todo esse universo é mil vezes mais interessando do que eu, tentando falar de sílabas de uma forma meio capenga, hablando meu portuñol na frente da lousa. Então meus alunos viraram uns demônios nesses últimos dois dias. Eu tive de falar muito mais alto do que estou acostumada. Resultado: zero voz! Pior que estou sozinha. Sozinha de marré-marré. Alec foi embora, o novo voluntário só começa semana que vem e está todo mundo tomado com outras turmas. Pois é. Vai ser bem punk dar aula amanhã. Hoje passei em uma farmácia e comprei um spray. (o spray mais horrivel do mundo. Com gosto de aniz, vê se pode! Arrrrgh!). Também estou fazendo exercícios de voz e comprei maçãs. São adstringentes e ótimas para a garganta. Estou aqui torcendo para amanhã ser um outro dia e minha voz estar melhorzinha, porque do jeito que está nesse momento, eu sou uma inútil. Os últimos dois dias foram bem impossíveis. Eu me sentia em uma batalha mesmo com as crianças. Parecia que eles estavam sapateando na minha cabeça. Era tão frustrante. Tentava fazer com que eles prestassem atenção, que fizessem silêncio, mas tinha sempre alguém falando junto, ou fazendo barulho, ou espontaneamente correndo pela sala, ou rolando no chão, ou batendo em alguém, ou mexendo nas minhas coisas, ou roubando algo do armário, ou apagando a lousa, ou fazendo o exercício pelo colega, ou me cutucando e me chamando. Minha sensação era a de que eu estava o tempo todo gritando e pedindo silêncio. “Fuego, porfavor, comporténse” (Fuego é o nome da minha turma. Quer nome mais apropriado?) Pelo estado da minha voz, eu realmente devo ter passado os dois últimos dias gritando. Hoje terminei o dia com a sensação de que eles me odeiam. Todos eles. Que eles não me suportam e me odeiam. Tive um momento de caos pela manhã que precisei segurar para não chorar. Queria tanto chorar. Justo hoje que também resolvi uma coisa super importante. Resolvi ficar aqui mais uma semana. Estou estendendo minha estadia na Guatemala. Hoje cedo emiti a nova passagem de volta e acertei minha estadia no projeto para mais uma semana. Estou criando todo um novo respeito pelos professores (e me sentindo bem culpada por algumas coisas que me lembro de ter feito...) Ok, amanhã é quarta. Vamos virar o jogo. Na sexta à noite já estou combinando. Vamos tomar cerveja e nos esbaldar de dançar (poperô em espanhol no melhor estilo guatemalteco), e no final de semana vou dormir no vulcão. Muitos planos excitantes pela frente. Foco e fazer o possível para chegar inteira até lá.

domingo, 9 de janeiro de 2011

LAGO ATITLAN

O despertador tocou às 4h20 da manhã. Sabe o que é isso? 4h20!!! Meu corpo estava até achando que era pegadinha. Aquela sensação de que eu nem tinha pegado no sono e já tinha acordado. A van passou para me pegar 4h45. Entrei, sentei no lugar que me pareceu mais confortável e dormi. Fui a primeira a ser pega, então ainda rolou um pinga-pinga para pegar turistas em seus hotéis. Todos, todos mochileiros de 20 e poucos. Eu vou apenas até Panajachel que fica umas 2h30 de Antigua. Eles todos estavam indo para a fronteira. Seguindo a mochilada para o México. Do meu lado sentou uma garota inglesa que estava mochilando a América Latina há seis meses (e eu desconfio que a última vez que ela tomou um banho foi na Inglaterra). Detesto intimidade! Achei que seria melhor dormir. E dormi. Minha programação era chegar por volta de 7h30 em Panajachel e tomar café da manhã com calma. Era o programado. Só que as duas topeiras que estavam dirigindo a van fizeram tanta confusão com os turistas, se perderam, que eu só cheguei às 8h40. A saída para o tour de barco era às 9h. Me deram um lunch box e já tive de sair correndo até o barco. Eu necessitada de um café. Engraçado que a Guatemala é uma grande produtora de café, mas eles aqui tomam fraco e instantâneo. Imagina? Um dos melhores cafés do mundo e todo mundo tomando Nescafé. Eu achando que ia me esbaldar aqui, tenho muita dificuldade de encontrar um lugar que tire um bom espresso. Mesmo em Antigua que é bem turística. Anyway. Depois que entrei no barco a coisa acalmou. Eu detesto fazer coisas correndo, então o epísódio todo podia ter me deixado de muito mal humor. Mas eu não estava afim de estragar meu domingo. Tirei minha máquina fotográfica da mochila e relaxei. Um dia inteiro de fotografias. Viu como eu sou uma criança fácil de ser agradada? O Lago Atitlan é gigantesco, rodeado por três vulcões extintos. De manhãzinha tinha uma névoa beirando o lago, a luz estava azulada que nem dava para acreditar. Olhei aquilo e pensei “Olha só o quadro da minha sala!”. Ajustei a câmera com um ponto subexposta e... LINDO! Depois tirei mais umas 15 fotos dos vulcões e do lago. Brinquei com diferentes ajustes e exposições. Mas aquela primeira foto... Aquela vai ser ampliada e virar um quadro azul na minha sala (o dia que eu tiver uma). O lago é todo rodeado por povoados. São 12 no total. Cada um recebe o nome de um apóstolo. Visitei primeiro San Marcos Laguna, depois San Pedro Laguna e por último Santiago Laguna, onde ficamos mais tempo e almocei. Uma pena, porque meu favorito foi San Pedro. Super informal, repleto de cafés, restaurantes, spas de massagem e aulas de yoga. Até conheci um filipino-holandês que dá aulas de meditação e respiração em Antigua. (Adoro a globalização! Essa coisa de “sangue puro” é tão last season...) Peguei o contato dele e acho que vou fazer. Vai ser no mínimo divertido. No final do dia ainda tive um tempinho para explorar um pouco o mercado de Panajachel, mas eu estava tão cansada que já não tinha muitas forças para fotografar. Não saíram tão legais. Mas foi um bom dia. Saldo super positivo. Eu não sei se é por exaustão, ou porque esse é o tempo da coisa mesmo, mas parece que está tudo mais calmo. Como se o meu vulcão estivesse extinto. Sinto progresso na minha técnica de fotografar. Ando calma e minha cabecinha não criou abobrinhas nem uma vez. Parece que tudo está perfeito e que eu estou exatamente onde eu devia estar a cada segundo do dia. Não estou falando de estar na Guatemala, ou em São Paulo, ou no mundo. Estou falando de viver o presente e sentir que ele realmente está acontecendo nesse exato momento. Sem passado, sem futuro. Sem projeção do que poderia ter sido. Estou só eu. Sendo. Um vulcão adormecido na beira de um espantoso lago azul. Acho que é isso. Acho que sou eu. Como a foto aqui embaixo, que vai decorar a sala da minha casa. Se algum dia eu tiver casa.

sábado, 8 de janeiro de 2011

GUATEMALA - DIA 5 E SÁBADO

Sobrevivi à primeira semana. Engraçado que faz tão pouco tempo que estou aqui, e parece uma vida. Estou completamente integrada na rotina, e as crianças... Ah! Como é que a gente pode criar afeto tão rápido? Eu me lembro no primeiro dia quando cheguei. Phoebe me fez uma apresentação do projeto, dizendo as regras que devíamos seguir. Uma das regras é que nós não podemos abraçar ou manifestar afeto pelas crianças na rua da comunidade. Não são hábitos da cultura indígena deles. “Mas quando estamos dentro do projeto, nós podemos abraçar, beijar, apertar.” Eu ouvi aquilo, e eu não me imaginava fazendo essas coisas com crianças completamente desconhecidas. Esse é o tipo de coisa que eu faço com os meus sobrinhos e só. E mesmo assim eles fogem de mim. Todavia, assim que cheguei no projeto foi uma explosão. Existe uma energia tão incrível, tão magnífica. Tudo o que eu queria fazer era abraçar, beijar, apertar aquelas crianças. Fico ansiosa de manhã esperando o momento de fazer isso. E elas se escancaram, pulam no seu colo, te beijo. Ontem, Maylin, uma aluna minha do período da manhã (bem inteligente por sinal) me abraçou no final da aula e disse “Estoy feliz, maestra. Estoy feliz que esteja aquí.”  Me apertou tão forte e disse “Te amo, seño!”. Deus! E para tanta gente é tão difícil dizer “Eu te amo”. Dizem inclusive que se você disser “eu te amo” para um cara, você provavelmente nunca mais vai vê-lo na vida (em compensação, se disser “eu te odeio”, vai ter o melhor sexo da sua vida...).Ontem foi também o último dia de Lyn e Alec. Lá estava eu chorando como uma bundona novamente. Eu e Alec, enquanto as crianças iam uma a uma se despedindo dele. No almoço rolou homenagem e discurso. A hora q Alec começou a falar, a voz embargada (porque ele é bundão como eu) eu já virei e avisei “If you cry, I cry”. E não deu outra. À noite fui com Martin (cino-inglês, também voluntário), Kim (australiano e doidinho, voluntário) e Hannah (escocesa, do staff da GVI e minha nova paixão aqui. Ela é demais!) comer uma pizza para nos despedirmos de Alec e Lyn. Um restaurante italiano de um americano (gato), mas o chef e o barman eram italianos (Gatos. Bem gatos.) A promoção era “Peça dois cocktails e ganhe uma pizza”. Eu e Hannah fomos de Apple Martinis. Quando o  barman soube que eu era brasileira e não tinha pedido caipirinha se sentiu ofendido. Mandou uma caipirinha mega caprichada para eu provar como cortesia da casa (Isso é para eu nunca dizer que nenhum gato pagou um drink para mim!). Depois de dois martinis e uma caipirinha, fomos dançar e tomar cervejas no La Sin Ventura. O lugar é aqueles tipos de infernos que eu só fui porque já estava altinha, não estou no meu país e a compania era boa. Imagina o pior do pop fm. Agora imagina isso em espanhol. Yeah, baby, yeah! Poperô guatemalteco. Acabou sendo divertidíssimo. Kim estava impossível, pulando de um lado para o outro e dançando. Martin estava mais no meu mood de tomar cerveja encostado em um canto. E Hannah desapareceu. Foi abduzida. (Ela está aqui há quase um ano. Completamente integrada a cultura local.) Cada música tinha seu respectivo videoclip exibido no telão... aquela coisa de um cara fazendo pose de mal com óculos escuros enquanto um par de gostosa rebola e faz cara de tesão atrás. Entre um poperô e outro rolava salsa. Kim me encheu tanto que eu fui dançar salsa com ele. Ou melhor, eu fui conduzí-lo na salsa.Tomei minha cerveja. Então um cara me tirou para dançar, a gente arrasou na salsa. Mais cerveja. Tentei ir ao banheiro. Mais cerveja. Resumo da ópera: eu já estava amiga do DJ, pulando igual louca ao som de “I´ve gotta feeling” dos Black Eyed Peas, Hannah rolava de rir e Martin incrédulo. Balada guatemalteca. Com a vantagem que não dá para correr o risco de amanhecer comendo sanduiche de pernil do Estadão porque tudo fecha a 1h. Por lei. Voltei para casa ameaçando Martin de morte caso ele falasse alguma coisa para alguém e acordei hoje às 9h. Quase uma benção depois dessa semana. O café da manhã tinha pasta de feijão e ovo frito de novo, mas dessa vez foi perfeito. Ótimo cardápio para ressaca. Encontrei com Martin e Hannah no Raibow Café (que é um charme. Tem um sebo e um pátio delícia.) e a gente passou o dia como lagartixas tomando Long Island Iced Teas e brigando com a conexão de internet que caía a cada 15 minutos. Quando a luz do Sol baixou Martin foi comido no mercado tirar fotos. O Mercado é como uma feira fixa a céu aberto. Meio como um camelódromo. Praticamente uma Disneyland para fotógrafos. Fiquei doida. Esse país é tão perfeito para fotografar. A luz, as cores, as pessoas. Estou totalemnte apaixonada. Amanhã acordo mega cedo. Saio às 5h para o Lago Atitlán. Mais mega fotos. Quem diria? Eu que não esperava nada!

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

GUATEMALA - DIA 4

Tive insônia hoje. Passei o dia tomando café. É quase imprescindível  tomar café. A gente sai de Antigua às 7h20. São 50 minutos até a comunidade. Chegando lá tenho que organizar o material para a aula, arrumar a sala, checar se todos os cadernos e textos estão em ordem. Então chegam as crianças. É preciso manter a energia alta o tempo todo. Se você der sinal de distração, de que não está 100%, eles te devoram.  Juro que essas crianças te devoram! No intervalo ainda temos que brincar. Não tem essa de sentar em um canto e vigiar as crianças não. Tem de correr, pular corda, brincar de esconde-esconde, dançar, andar de cavalinho. Às vezes tenho dois ao mesmo tempo no colo e um pendurado na perna. Eles acham divertidíssimo. Hoje as meninas estavam rolando no chão de terrra. Literalmente rolando. Então resolveram que seria legal me fazer um penteado. Imagina que delícia. Mãozinhas ávidas fazendo tranças nos meus cabelos. Passei o resto do dia com um penteado super torto na cabeça. A pausa para o almoço é o único momento de alívio. Logo em seguida já voltamos para o projeto e planejamos aulas, e à tarde tudo de novo como o período da manhã. Os alunos da tarde todos os dias foram mais comportados do que os da manhã. Hoje inverteram. Os da tarde estavam terríveis. Eu tinha a sensação que não parava de chamar a atenção. Exaustivo. Dona Helena, a líder comunitária que cozinha para a gente, fez um prato típico guatemalteco especial. Pepián. É um prato sofisticado, que eles fazem em datas comemorativas e casamentos. Demora umas 5 horas para ser feito. Tanto luxo porque os pais de Don estavam visitando o projeto hoje e Don é muito respeitado na comunidade. Nossa, tenho comido tão bem por aqui. Não fui em um único restaurante até agora. Só comida caseira. Eu acho isso luxo. No final da tarde passei na agência de turismo para ver quais as opções de passeio para o final de semana. Quero muito subir um vulcão. A Guatemala tem tantos vulcões. Pode-se subir inclusivo os ativos. Tirar fotos ao lado de rios de lava. Quando meu avião estava pousando eu vi um vulcão soltando um cogumelo de fumaça no ar. É bem impressionante. Parece desenho animado. Na terça-feira durante o jantar, Duilio (meu host father) estava me contando algumas lendas guatemaltecas. Coisas tipo “homem do saco” e “mula sem cabeça”. Todas as culturas possuem suas próprias versões das mesmas lendas. Adoro ouvir sobre isso. Hoje no café da manhã ele me disse que haveria uma apresentação das lendas na Casa de Cultura na praça central. Saí da aula de espanhol e fui para lá assistir. Nenhum dos outros voluntários se animou então eu fui sozinha. Cheguei lá e estavam alguns atores fantasiados dos personagens. Consegui identificar alguns pelas histórias que Duilio me contou. Sentei no fundo, Tinha um projetor de slides, microfone. Rolou uma grande cerimônia, com autoridades locais sendo homenageadas e discursos empolgadíssimos. Eles são bem cerimoniosos esses guatemaltecos. Muitos aplausos, entregas de certificados de honra. Depois de mais de meia hora de blábláblá, começou uma palestra de um parapsicólogo especializado em “estudos do outro mundo”. A palestra não era exatamente uma apresentação de tradições folclóricas, mas um seminário sobre a real existências dos personagens. Um exemplo, uma das lendas mais populares é o  da Chorona. Uma mulher que perdeu seu filho no parto e morreu, e acreditam que vaga pelas ruas durante as noites chorando em busca de seu filho. É uma versão do nosso “Homem do Saco”. Utilizada para assustar crianças. “Mira niño. Se no te comporta, la chorona ven te buscar, porque ella procura su hijo e va atras de los niños.”. O homem, muy serio, usando terno e gravata e tudo, dizia possuir pelo menos cinco gravações autênticas da tal da Chorona. Agora imagina só. Uma palestra com um cara a sério clamando ter provas irrefutáveis do Curupira!? Ai, sei que é feio, mas eu estava quase rolando de rir. Acabei fazendo amizade com uma chinesa turista e saímos para tomar um café. Foi gostoso ter uma pausa da loucura que foi essa semana. Amanhã é o último dia de Alec e Linn no projeto (o casal na terceira idade da Austrália). Acho incrível o pique que os dois têm. Eles seguem para Honduras no domingo. Preciso pensar em algo e propor para as crianças fazerem amanhã para se despedirem de Alec.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

GUATEMALA - DIA 3

Nada como um dia depois do outro, não? Quase não faz sentido nenhum. Um dia puro caos, no dia seguinte parecia até que as crianças tinham tomado ritalina. A aula foi perfeita. Estamos retomando a alfabetização do zero, e as crianças responderam tão bem. Estavam concentradas, dinâmicas, participativas. Fizeram os exercícios lindamente, e os cadernos, uma graça! Depois ainda fizeram bilhetes e cartões de “regalo” para uma das voluntárias que estava indo embora hoje. No final de cada período, todas as crianças se concentraram no pátio (um pedaço de terra batida que fica no meio dos barracos de madeira onde damos aula) e, uma por uma, foi se despedir de Katie. Eu estou aqui não faz nem uma semana e chorava como uma boba de ver aquelas crianças abraçando e beijando a americana de 18 anos que resolveu vir para a Guatemala em seu Gap Year. Alguns entravam na fila duas, três vezes, para beijá-la e abraçá-la. E diziam que a amavam. “Yo te amo Seño Katie”. De matar. Eu morrendo de orgulho das minhas classes, que estão respondendo às regras de disciplina. Estavam todos organizadinhos, sentados educadamente, aguardando sua vez de se despedir. No final do dia recebi milhões de elogios da equipe. Sarah veio me dizer que eu era uma “star”, e uma outra interna do programa me disse que nunca tinha visto as crianças obedeceram tão prontamente um voluntário antes. Fiquei embasbacada. Eu achando que estava afundando irremediavelmente, e como em um passe de mágica está tudo certo. Meu terceiro dia no projeto, e acho que estou conquistando o respeito dessas crianças. Verdade que cada turma tem os seus. No período da manhã tenho a dupla dinâmica Oscar e Irma. Eles são inteligentes, rápidos e terríveis. Oscar hoje tirou o dia para me desafiar. Se jogava no chão e quando eu pedia para ele sentar-se direito, olhava bem para minha cara e dizia “No!”. Cara! Que desespero. Então eu olhava muito séria para ele e dizia “No estoy pedindo para se sente, estoy DICENDO que se sente.”. Rolava alguns segundos de silêncio, em que eu secretamente tremia com a idéia de que ele não cedesse e eu perdesse completamente a autoridade na sala. Então ele se levantava e se sentava. Internamente eu respirava aliviada. É verdade que crianças testam limites, e é saudável que façam isso, mas putz! Eu não fazia idéia de que tão difícil. Como as coisas parecem que começam a entrar nos trilhos, consegui planejar as aulas para o restante da semana. E recebi a maravilhosa notícia de que não ficarei sozinha com a sala na próxima semana. Teremos uma interna voltando e que dividirá a sala comigo. YEAH! Tem me incomodado ainda não ter tempo para nada. Ou talvez isso seja muito bom. Não sobra tempo para ficar pensando em coisas que não devem ser pensadas. De qualquer forma mudei o horário da minha aula de espanhol. Eu chegava do projeto e tinha de ir correndo para o espanhol, sem tempo nem de fazer xixi. Depois corria para casa, tomava banho, jantava, preparava aula. Quando via, era quase meia noite, e eu ainda queria escrever aqui. Sem perceber lá se foram todas as horas do dia. Hoje fui para o espanhol meia hora mais tarde. Deu tempo de chegar de Itzapa, sentar no café com o pessoal. Jogar papo fora. Tomar um café enorme, descansar um pouco. E então ir com calma, aprender verbos irregulares em espanhol. Como fico o dia todo falando em espanhol com as crianças, tenho a sensação que já estou fluente em menos de uma semana. Claro que para quem fala português, nem é um grande feito sair falando espanhol tão rápido. Mas eu sou uma pessoa que sempre odiou essa língua. Sempre achei que nunca conseguiria falar espanhol. Agora, vindo pelas vozes guatemaltecas, o espanhol e eu estamos fazendo as pazes. Comprei um livro de gramática, estou estudando quando sobra um tempinho. As vozes na minha cabeça estão todas “hablando”. Quem diria! Yo hablando español! Quando você está no lugar certo, fazendo a coisa certa, parece que o universo se escancara de oportunidades. Faz com que tudo flua rápido, verdadeiro, sem esforço. Se a coisa continuar nesse ritmo, eu resolvo o que eu vim resolver em mais dois dias e fico pronta para voltar para casa no final de semana.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

GUATEMALA - DIA 2

Caos. Caos. Caos. Nós tentamos preparar todo um roteiro de aula, e eu fiz só um terço, já que somos 3 os responsáveis pela turma. Acontece que Phoebe hoje ficou presa com um monte de papelada burocrática e quase não entrou na sala. Alec, tadinho, tem o pior espanhol do mundo, então a sala nos dois períodos ficou praticamente na minha mão. Que desespero. Phoebe ainda me deu a grande notícia de que semana que vem eu fico TOTALMENTE sozinha com a turma. Sem nem mesmo algum voluntário com espanhol capenga para ajudar. Tadinho do Alec. Chega a se engraçado. Ele é bem alto e tem cabelos todos grisalhos. Um jeitão ingênuo. Eu fico olhando aquele senhorzinho tentando passar uma folha de exercício para 20 crianças endiabradas. Ele vai meio corcunda em direção a um grupo de 4 alunos, dizendo com aquele sotaque forte gringo: “Porrrrfavorrrr, escrebe co-mo llama”. Querendo dizer que as crianças devem escrever seus nomes na folha. Enquanto isso as demais 15 estão tocando o puteiro, pulando mesas e cadeiras, simulando lutas, caindo no chão. Seria engraçado se não fosse trágico. Eu tentei criar algumas regras para colocar alguma disciplina. Tipo, um código para quando todos devem se sentar e fazer silêncio. Talvez por ser novidade na vida dessas crianças até que funcionou medianamente. Mas no geral eu tinha vontade de chorar. Em um momento fui até malvada. Larguei Alec sozinho sendo devorado pelas crianças e fui para nossa sala de descanso tomar uma água e comer uma banana. Quando voltei, graças à Deus, ninguém tinha furado o olho de ninguém. Eu não posso ser injusta. Essas crianças nunca foram normalizadas, então não é culpa delas. São crianças maravilhosas e é tudo uma questão de disciplina. Elas são tão carinhosas, que eu me seguro para não cair em lágrimas umas vinte vezes por dia. Hoje Phoebe estava muito triste porque seu namorado foi embora do projeto e eles vão ficar 3 meses sem se ver. No começo do período da manhã, enquanto brincávamos com as crianças, ela deixou escapar algumas lágrimas. As meninas todas pularam no pescoço dela e perguntavam “Porque chora Seño Phoebe?”. Então uma delas correu até a janela, pegou um pedaço de papel higiênico e veio limpar as lágrimas de Phoebe com suas mãozinhas encardidas. É inacreditável como essas crianças são capazes de dar amor. Elas, que recebem tão pouco. E tanta gente miguelando por aí... Pois é o que sempre digo. A gente só dá o que tem. Em sala de aula conseguimos indentificar três níveis diferentes. Um grupo que não faz a menor idéia do que está acontecendo. Não sabem nem escrever seus próprios nomes. Um outro grupo mediano, que entende, mas ainda está semi-alfabetizado. Muitos deles ainda espelham as letras. Escrevem o F do lado esquerdo, por exemplo, e isso é uma coisa comum em crianças de idade pré-escolar, com 3-4 anos. Não em crianças com 8-9. E temos um terceiro grupo, que está mais próximo do nível esperado deles. Não escrevem em letra cursiva, e não são capazes de montar frases. Mas atendem perfeitamente os exercícios propostos, são sempre os primeiros a terminar e (para nosso desespero) lideram a bagunça, pegam as folhas dos amigos para fazer o exercício para eles e ficam entediados. Muito entediados. Não faço idéia de como vamos fazer para trabalhar três níveis tão diferentes ao mesmo tempo. Além disso senti uma dose maciça de frustração hoje no final da tarde. De repente me ocorreu que é quase inútil todo esse trabalho. As necessidades dessas crianças são tão profundas que eu não vejo saída. Não acredito mesmo que haja alguma forma de mudar suas vidas. São tantos fatores. Culturais, familiares, sociais, politicos, educacionais, psicológicos, biológicos, etnicos, financeiros, alimentares, de desenvolvimento. Começou a me parecer até patético um bando de estrangeiro que vem aqui, fica uns dias se matando com um espanhol mezzo calabresa, mezzo mussarela, e vai embora achando que fez alguma coisa por eles. Eu fiquei brincando de esconde-esconde hoje com as meninas com uma certeza absoluta de que não há nada que eu possa fazer para mudar a vida delas. No intervalo cheguei a compartilhar esses pensamentos com Don (o diretor do projeto, um inglês divertidíssimo e apaixonado pelo Brasil). Ele concordou comigo, e disse “Mas nós podemos dar a elas educação, alimento enquanto estão conosco, atenção, carinho, amizade. Um momento do dia em que elas tenham uma experiência diferente de suas casas.” Pode ser.Talvez. Mais tarde eu estava recolhendo uma folha de exercícios de uma aluna muito fraca. Muito tímida e quieta também. Ela parece estar sempre com medo de tudo e de todos. Era um exercício de Ciências Sociais e eles precisavam completar uma ficha com suas características, como nome, idade, cor dos olhos e cabelos. A coitada não tinha escrito NADA, ela nem olhava para a folha e balançava a cabeça negativamente. Eu sentei ao lado dela com um balde de paciência, quase implorando para ela acreditar que conseguia e pelo menos tentar fazer o exercício. Demorou, foi aos poucos, mas ela completou a ficha. Quando terminou, olhei para ela e disse “Viu Marisol! Eu sabia que você conseguia. Você foi tão corajosa. Estou tão orgulhosa de você.” E essa pequena índia, de cabelos compridos e roupas coloridas, pulou no meu colo, me abraçou tanto. Mas tanto. Escondia o rosto no meu colo, depois levantava, olhava para o meu rosto, sorria e voltava a me abraçar e esconder o rosto. Ela não disse uma palavra, mas eu sei que disse tudo. É. Talvez seja isso mesmo. Talvez seja só uma gota no oceano. Mas ainda assim é uma gota, e não oceano.
PS.: O café da manhã hoje foi panquecas com maple syroup. Meu estômago ficou tão feliz! :-)

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

GUATEMALA - DIA 1

Sabe qual é o café da manhã típico guatemalteco? Banana da terra frita, uma pasta bem temperada de feijão preto e ovos mexidos. Juro que comi isso hoje às 6h30 da manhã. Acompanhado de momento família com a minha host family e conversas sobre diferenças culturais dentro da América Latina. Depois fui andando até o café que é nosso ponto de encontro para irmos ao projeto. Eu estava um pouco apavorada. Hoje eu ia finalmente enfrentar uma horda de crianças remelentas sem ter a menor idéia do que fazer com todos eles juntos dentro de uma classe. A comunidade em que trabalho fica a 45 minutos de Antigua. O clima na van é de sono, café e uma ou outra conversa perdida. Phoebe e Sarah revisavam  as lições do dia em suas apostilas. As duas são internas do projeto. Sarah vai ser transferida para o projeto em Salvador no Brasil no próximo mês. Ela quer que eu ensine português para ela... me deu uma preguiça! Quando a gente fala em comunidade indígena vem toda uma imagem a nossa mente, não!? Ocas espalhadas no meio da floresta. Cabanas improvisadas com fogueiras na porta. Ou, melhor ainda, aquelas casas de pedra que nos remetem às ruínas mayas da região. Se você também pensou em uma dessas alternativas, sinto lhe dizer que nenhuma corresponde a realidade (nunca corresponde!). A comunidade de Itzapa nada mais é do que uma grande favela com casas precárias de alvenaria, algumas de madeira, sem água encanada e sem saneamento básico. Quase nenhum asfalto. O projeto tem recebido poucos voluntários, então algumas turmas estão em recesso. Eu peguei a sala Fuego, onde ficam as crianças de 6 à 10 anos. Phoebe é a responsável pela sala, eu e Alec (um senhor australiano que está com a esposa voluntariando no projeto) demos suporte. De manhã eu praticamente observei e ajudei a colocar um pouco de ordem. As crianças frequentam escolas públicas e participam do projeto no período livre para reforçar o conteúdo. Cerca de 80% da população da Guatemala é indígena. (Isso inclui o presidente). Até uma geração atrás essas pessoas não frequentavam nenhuma espécie de escola. Em parte por causa da pobreza e da necessidade de cada membro da família contribuir com o orçamento familiar (Nada muito diferente de qualquer periferia brasileira), mas em grande parte por uma questão cultural. Os índios não mandam seus filhos  para a escola, e quando mandam, vão os meninos. As meninas são completamente negligenciadas. O projeto procura suprir também essa lacuna. Essas crianças vêm em sua maioria de lares desestruturados. Famílias numerosíssimas, onde não há cultivo de afeto, individualidade ou privacidade. Convivem em ambientes violentos, com pais drogados e alcoolizados. As taxas de alcoolismo entre os índios é estratosférica. Sofrem abusos físicos, psicológicos e sexuais. Apresentam sintomas de desnutrição e subdesenvolvimento. SAbendo disso, eu fui preparada para me deparar com um verdadeiro caos. Crianças chorando, gritando, correndo, quebrando coisas. Piolhos pulando nos meus cabelos. Qual não foi minha surpresa ao encontrar as crianças mais doces e amáveis que já conheci. Elas chegam na escola completamente entregues, e dispostas a gostar de você, não importa quem você seja. Mesmo sem nem serem apresentadas, elas seguravam minha mão, me faziam elogios, pediam colo. Me abraçavam milhares de vezes. Conforme foram ficando mais “íntimas”, pulavam no meu pescoço, pediam abraços e sorriam. O tempo todo, sorriam. Na sala eles estavam bastante normalizados. Um pouco ansiosos, mas isso acredito que seja em parte pela falta de preparo pedagógico de todos os voluntários que passam por ali. Mesmo Phoebe, que é uma interna do projeto e é muito esperta e dedicada, não tem a mínima idéia de como estabelecer regras e rotinas em uma sala de aula. Não que eu mesma saiba muito, mas vinda de uma família de pedagogos e donos de escola por todos os lados, algumas coisas eu aprendi por osmose. A turma da tarde já foi mais caótica. Cerca de 22 alunos que começavam pela primeira vez no projeto. A grande maioria nem alfabetizada estava. Ficamos os três sambando com o exercío que tínhamos proposto (e que era anos luz mais puxado do que o nível das crianças), até que o sino finalmente tocou e nós pudemos sentar e tentar entender o que tinha acontecido. REsultado é que amanhã vamos ter de voltar do zero e revisar toda a matéria que crianças nessa faixa etária deveriam dominar. Alec ficou com os exercícios matemáticos. Eu estava até agora preparando uma folha de exercícos para trabalhar vogais. Muito divertido trabalhar linguagem de uma língua que não é sua e voce não domina. Fiquei horas procurando no dicionário palavras em espanhol que começavam com cada vogal para ter na manga. Assim que as crianças saíram, todo nós pulamos para dentro da van e voltamos para Antigua. Tomei um café muito rápido com Alec e Phoebe enquanto planejávamos o dia de amanhã e segui correndo para minha aula de espanhol. Vou dizer que não parecia tão puxado quando recebi toda a programação antes de vir para cá. Eu estava tão cansada, suja. Passei o dia lembrando do tal do café da manhã. Terminei minha aula (que é particular, então não dá nem para enrolar no meio da classe) e voltei me arrastando para casa. Já tinha escurecido e eu nunca senti tantas cólicas na minha vida. Dispensei o jantar, tomei um chá de boldo e camomila. Aquele café da manhã exótico não foi apenas uma lembrança do dia todo. Parece que a lembrança vai se estender por toda madrugada... Bem. Eu vim preparada para que isso acontecesse. Só não esperava que fosse tão logo. Amanhã começa tudo de novo. Com bananas fritas, frijoles e cólicas.

domingo, 2 de janeiro de 2011

GUATEMALA - PRIMEIRAS IMPRESSÕES

Eu vim para a Guatemala sem uma imagem pré-concebida. Vim porque vim, nem pensei muito. Não fiquei estudando sobre o país e a cultura até virar PHD como sempre faço. Eu não tinha a mínima idéia nem de qual era a moeda local. Continuo sem fazer, sei que começa com Q e de resto não faço a mínima idéia do que é caro ou barato. O trecho do vôo até o Panamá foi dolorido. Saí de GRU às 4h30 da manhã. Seguindo direto de um jantar divino de Reveillon, com um taxista tagarela até o setor de embarque da Copa Airlines, uma fila chata e demorada de check in, para enfim sentar no assento 18C (detesto corredor) e enfim capotar antes mesmo do avião levantar vôo. Dormi praticamente todas as 7 horas até o Panamá. Mas foi um sono leve, sem comprometimento. Com o corpo dolorido e incomodado. Já as duas horas do Panamá até a Guatemala foram muito mais confortáveis. O vôo estava vazio, sentei sozinha na fileira e ainda pude escolher o lugar. Sentei em frente à passagem de emergência da porta em cima da asa. Dava tanto para esticar as pernas que minhas juntas até estalavam.  Enfim, Guatemala. Vou confessar que me bateu um medinho quando vi policiais com cachorros andando em cima das esteiras de bagagem, cheirando minha mala. Depois ainda escanearam e checaram meu passaporte umas 3 vezes mesmo depois de ter passado pela imigração. Falaram que era procedimento padrão. Eu tive um flash daquela cena de “Bridget Jones” quando ela vai para a Tailândia, mas mandei a imagem embora rapidinho. Só para não atrair. Uma representante do projeto estava me espeando na saída. Phoebe é uma australiana linda de 21 anos, muito inteligente e um poço de simpatia. Fomos conversando pelo caminho até Antigua, que fica cerca de 45 minutos de Guatemala City e é onde será nossa base. Deixamos minhas coisas na casa da minha host family e ela me levou para um tour prático pela cidade. Onde fica a lavanderia, onde fica caixa eletrônico, onde fica o supermercado, a farmácia, papelaria, internet café, correios, e a loja com o melhor espresso da cidade. Guatemala é uma grande produtora de café. Tenho uma certa expectativa em degustar muitos grãos diferentes nas próximas semanas. Depois sentamos para ela me fazer uma apresentação geral do projeto. A GVI é uma ong que atua em dezenas de países de Terceiro Mundo com projetos que agreguem melhorias urbanas, sociais ou ambientais. Esse projetos são financiados por doações e por voluntários que se dispõe a participar de um dos projetos pelo período mínimo de 2 semanas. Eles possuem escritórios na Austrália, UK, Irlanda e EUA, logo a grande maioria dos voluntários são desses países. O projeto que eu vou participar é uma escola em San Andrés Itzapa, um povoado indígena nas montanhas a 40 minutos de Antigua. O projeto todo é muito interessante, mas vou falar um outro dia dele aqui para não me alongar muito. Depois da explanação geral sobre o projeto, Phoebe me orientou sobre todos os riscos e perigos que podem acontecer durante minha estada. Desde intoxicação alimentar, até procedimentos de segurança em caso de terremotos. (A Guatemala teve um grande terremoto em 1976. Ele costuma acontecer a cada 30 anos, logo já estamos na prorrogação...) Depois ela ainda me mostrou onde eu terei aulas de espanhol e me apresentou para outros voluntários do projeto. Todos novinhos, mas transmitindo a mesma maturidade que ela. Tomei um suco de laranja com eles, mas fui para a cama às 20h30 da noite, com meu corpo mal aguentando escovar os dentes. Acordei hoje bem cedo, tomei café com minha host family. Angela e Duilio são dois aposentados adoráveis, que me receberam com tanto carinho e atenção que eu morderia a bochecha dos dois se esse tipo de manifestação de carinho fosse aceita por aqui. Dentro das diárias contratadas, eles não fornecem alimentação aos domingos, mas Angela me convidou pra tomar o café da manhã com eles antes de irem à missa. A casa é simples e pobre, mas muito bem cuidada e limpa. As paredes estão bem pintadas, e tem flores na janela. Os móveis estão sempre brilhando como se tivessem acabado de passar lustra móveis. Os dois são católicos, e inteligentes. Ficamos um tempão na mesa do café falando sobre algumas semelhanças e diferenças culturais. Eles pareceram tão acessíveis para me contar sobre a vida deles, algumas histórias do país. Antigua fica no meio de um vale entre dois vulcões. O Agua e o Fuego. Agua está inativo há muito tempo. Fuego vira e mexe cospe suas fumacinhas. Mas nenhum risco de uma erupção hollywoodiana. Agora é o que eles chamam de “inverno altiplano”, um período de seca, calor de dia e frio à noite. De manhã o Sol batia de leve esquentando o ar. Sai para explorar as poucas ruelas de paralelepípedo da cidade. É como uma Parati. Toda tombada, só que com casinhas coloridas. Cheias de lojas lindas de artesanato e cafés charmosérrimos. No centro há uma praça com um chafariz, rodeada pro dois prédios públicos com bandeiras em cima e galerias na frente, e uma igreja linda em frente. Gostoso se perder pelas ruas também para ir descobrindo ruínas, museus, igrejas para todos os lados. Barracas indígenas vendendo de tudo. Antigua é um festival de clichês da América Central. Tudo o que você sempre quis de um país de terceiro mundo. Para fotografar então. É como dar doce para criança. De deixar louco e com água na boca. As pessoas são lindas, as cores muitas e vibrantes. Tudo se contrasta com tanta harmonia. A vida cotidiana é tão interessante. Se você resolver ficar parado por cinco minutos em uma esquina qualquer, vai sair de lá com pelo menos uns 5 shots diferentes com jeitão de National Geographic. Parece que a cidade inteira estava acontecendo para minha lente hoje. Tirei mais de 300 fotos. Os indígenas olham um pouco desconfiados, mas no geral são um povo simples, do bem. Eles sorriem o tempo todo. Todo mundo te cumprimenta na rua, “Bueno Año”, “Buena Tarde”.  Mesmo depois das 11h, quando as ruas são invadidas por turistas em busca de um brunch de domingo, ainda assim a cidade não se descaracteriza. Não perde seu charme. A vida é. De um jeito despretencioso, descompromissado com tudo o mais que exista fora no mundo. Como viver em um quadro mágico de Frida Khalo. Não sei se é Antigua, ou toda a Guatemala, mas as pessoas aqui parecem que sabem de algum segredo. Algo que lhes confere uma leveza, uma plenitude que se conserva acima da pobreza, das limitações sociais, dos preconceitos, dos conflitos etnicos internos. Talvez seja coisa de quem está protegido e rodeado por tantos vulcões. Talvez não seja nada, mas eles querem nos fazer pensar que eles sabem de algo que não sabemos. Só sei que, assim de cara, Guatemala me parece um refúgio perfeito. Um universo paralelo de tudo o que eu achava que era mundo. Talvez seja algo que eles coloquem na água, vai saber... Também não quero pensar. Não quero concluir nada. Tudo é tão colorido, que eu vou apenas sorrir e cumprimentar as pessoas na rua.