terça-feira, 4 de janeiro de 2011

GUATEMALA - DIA 2

Caos. Caos. Caos. Nós tentamos preparar todo um roteiro de aula, e eu fiz só um terço, já que somos 3 os responsáveis pela turma. Acontece que Phoebe hoje ficou presa com um monte de papelada burocrática e quase não entrou na sala. Alec, tadinho, tem o pior espanhol do mundo, então a sala nos dois períodos ficou praticamente na minha mão. Que desespero. Phoebe ainda me deu a grande notícia de que semana que vem eu fico TOTALMENTE sozinha com a turma. Sem nem mesmo algum voluntário com espanhol capenga para ajudar. Tadinho do Alec. Chega a se engraçado. Ele é bem alto e tem cabelos todos grisalhos. Um jeitão ingênuo. Eu fico olhando aquele senhorzinho tentando passar uma folha de exercício para 20 crianças endiabradas. Ele vai meio corcunda em direção a um grupo de 4 alunos, dizendo com aquele sotaque forte gringo: “Porrrrfavorrrr, escrebe co-mo llama”. Querendo dizer que as crianças devem escrever seus nomes na folha. Enquanto isso as demais 15 estão tocando o puteiro, pulando mesas e cadeiras, simulando lutas, caindo no chão. Seria engraçado se não fosse trágico. Eu tentei criar algumas regras para colocar alguma disciplina. Tipo, um código para quando todos devem se sentar e fazer silêncio. Talvez por ser novidade na vida dessas crianças até que funcionou medianamente. Mas no geral eu tinha vontade de chorar. Em um momento fui até malvada. Larguei Alec sozinho sendo devorado pelas crianças e fui para nossa sala de descanso tomar uma água e comer uma banana. Quando voltei, graças à Deus, ninguém tinha furado o olho de ninguém. Eu não posso ser injusta. Essas crianças nunca foram normalizadas, então não é culpa delas. São crianças maravilhosas e é tudo uma questão de disciplina. Elas são tão carinhosas, que eu me seguro para não cair em lágrimas umas vinte vezes por dia. Hoje Phoebe estava muito triste porque seu namorado foi embora do projeto e eles vão ficar 3 meses sem se ver. No começo do período da manhã, enquanto brincávamos com as crianças, ela deixou escapar algumas lágrimas. As meninas todas pularam no pescoço dela e perguntavam “Porque chora Seño Phoebe?”. Então uma delas correu até a janela, pegou um pedaço de papel higiênico e veio limpar as lágrimas de Phoebe com suas mãozinhas encardidas. É inacreditável como essas crianças são capazes de dar amor. Elas, que recebem tão pouco. E tanta gente miguelando por aí... Pois é o que sempre digo. A gente só dá o que tem. Em sala de aula conseguimos indentificar três níveis diferentes. Um grupo que não faz a menor idéia do que está acontecendo. Não sabem nem escrever seus próprios nomes. Um outro grupo mediano, que entende, mas ainda está semi-alfabetizado. Muitos deles ainda espelham as letras. Escrevem o F do lado esquerdo, por exemplo, e isso é uma coisa comum em crianças de idade pré-escolar, com 3-4 anos. Não em crianças com 8-9. E temos um terceiro grupo, que está mais próximo do nível esperado deles. Não escrevem em letra cursiva, e não são capazes de montar frases. Mas atendem perfeitamente os exercícios propostos, são sempre os primeiros a terminar e (para nosso desespero) lideram a bagunça, pegam as folhas dos amigos para fazer o exercício para eles e ficam entediados. Muito entediados. Não faço idéia de como vamos fazer para trabalhar três níveis tão diferentes ao mesmo tempo. Além disso senti uma dose maciça de frustração hoje no final da tarde. De repente me ocorreu que é quase inútil todo esse trabalho. As necessidades dessas crianças são tão profundas que eu não vejo saída. Não acredito mesmo que haja alguma forma de mudar suas vidas. São tantos fatores. Culturais, familiares, sociais, politicos, educacionais, psicológicos, biológicos, etnicos, financeiros, alimentares, de desenvolvimento. Começou a me parecer até patético um bando de estrangeiro que vem aqui, fica uns dias se matando com um espanhol mezzo calabresa, mezzo mussarela, e vai embora achando que fez alguma coisa por eles. Eu fiquei brincando de esconde-esconde hoje com as meninas com uma certeza absoluta de que não há nada que eu possa fazer para mudar a vida delas. No intervalo cheguei a compartilhar esses pensamentos com Don (o diretor do projeto, um inglês divertidíssimo e apaixonado pelo Brasil). Ele concordou comigo, e disse “Mas nós podemos dar a elas educação, alimento enquanto estão conosco, atenção, carinho, amizade. Um momento do dia em que elas tenham uma experiência diferente de suas casas.” Pode ser.Talvez. Mais tarde eu estava recolhendo uma folha de exercícios de uma aluna muito fraca. Muito tímida e quieta também. Ela parece estar sempre com medo de tudo e de todos. Era um exercício de Ciências Sociais e eles precisavam completar uma ficha com suas características, como nome, idade, cor dos olhos e cabelos. A coitada não tinha escrito NADA, ela nem olhava para a folha e balançava a cabeça negativamente. Eu sentei ao lado dela com um balde de paciência, quase implorando para ela acreditar que conseguia e pelo menos tentar fazer o exercício. Demorou, foi aos poucos, mas ela completou a ficha. Quando terminou, olhei para ela e disse “Viu Marisol! Eu sabia que você conseguia. Você foi tão corajosa. Estou tão orgulhosa de você.” E essa pequena índia, de cabelos compridos e roupas coloridas, pulou no meu colo, me abraçou tanto. Mas tanto. Escondia o rosto no meu colo, depois levantava, olhava para o meu rosto, sorria e voltava a me abraçar e esconder o rosto. Ela não disse uma palavra, mas eu sei que disse tudo. É. Talvez seja isso mesmo. Talvez seja só uma gota no oceano. Mas ainda assim é uma gota, e não oceano.
PS.: O café da manhã hoje foi panquecas com maple syroup. Meu estômago ficou tão feliz! :-)

2 comentários:

Unknown disse...

ok, talvez eu tenha perdido o fio da meada, mas QUI QUI VC FOI FAZER NA GUATEMALA, FIA?

Anônimo disse...

oi dri, sensacional esse relato! só malucos de pedra nesse projeto no meio da guatemala, incluindo um final de relacionamento quasi mexicano, não fosse na guatemala... mas tem coisa aí: a retribuição dessa menininha diz muito. o inglês tem razão. mas vocês continuam sendo todos loucos, maravilhosamente loucos!