terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Tem épocas em que eu fico entediada. Às vezes pessoas me entediam. A gente recebeu uma avalanche de novos voluntários essa semana. Deu uma preguiça. Uma molecada de vinte e poucos, cheia daquela atitude politicamente correta que eu detesto. Alguém devia acabar com o politicamente correto. Todo mundo fazendo um esforço danado para ser legal, e querendo mostrar o quão generoso é por estar fazendo isso. Fazendo uma força para ser low profile. E aquele discurso todo no ar de “Oh, as crianças são demais! E elas passam por tanta coisa e tem tanta fome.”. Hoje estava todo mundo tirando foto no intervalo. Ensaiando pose pra sair bonito no Facebook. Ah, sei lá. Eu adoro fotografar. E já tirei bastante fotos das crianças. Mas, talvez seja meu olhar, nas minhas fotos elas parecem todas um pouco tristes. Eu não consigo ver essa coisa incrível e maravilhosa que todo mundo vê. Para mim são crianças, com vidas horriveis, e pobres. Mas que também enchem o saco às vezes, são irritantes, fazem bagunça, precisam de limites. Eu não vejo muita coisa de diferente entre elas e as crianças que costumo ver em escolas particulares de São Paulo. Algumas são bonitas, outras feias. Elas fazem bagunça, correm, brigam. Fazem muito barulho. Criança. Eu não postei nenhuma foto ainda. Também não tenho nenhuma abraçando crianças, ou carregando criança ranhenta no colo.  Nada contra, é só minha opção. Eu estou curtindo tanto fotografar que não dá mais vontade de ficar na frente da câmera. Não sei bem como me portar. Outro dia eu soltei dentro da van, “Essas crianças não tomam banho, né!?”. E todo mundo me olhou como se eu tivesse soltado uma frase de racismo imperdoável. Como se eu fosse a pessoa mais horrível do mundo. Ok, eu sou louca pelos meus alunos. Sou louca mesmo por eles. Pulo como uma leoa para defendê-los. Passo o dia abraçando, beijando, apertando. Eles pulam no meu colo, e me beijam e apertam. Mas quando eu chego em casa a primeira coisa que eu quero fazer é tomar banho. É simples. É natural. O fato de serem crianças, e de eu amar todas elas, não muda o fato de que elas fedem. São sujas, encardidas. Os narizes escorrem. É o que é. Quem disse que para uma criança ser fofa, precisa estar de banho tomado com lacinho na cabeça e roupa de marca? Se fossem crianças ricas que estivessem fedendo, tudo bem dizer que elas não tomavam banho? O politicamente correto para mim é a coisa mais nociva hoje no mundo. Faz a vida ficar maniqueísta e reduz todos os valores a um conceito simplista e superficial. Eu gosto demais dos tons de cinza. Bom, então hoje estava todo mundo posando para foto de Facebook no recreio. Escolhendo as crianças com as roupas mais exóticas e os cabelos mais desgrenhados. Afinal, hoje em dia a gente precisa de provas de que é uma boa pessoa. Eu sou old school. Ainda acho que vale mais a atitude do que um perfil em comunidade virtual cheio de amigos. Pelo menos o meu novo voluntário é legal. Um menino, de 21 anos, inglês. Está meio assustado e capenga no espanhol, mas hoje a tarde deixei a classe praticamente inteira na mão dele. Até que se saiu super bem. Tem sido um alívio. Poder dividir as tarefas. Quatro mãos para escrever em caderno. Uma benção. Deu até para sentar e tomar uma cerveja hoje depois da aula. Até agora a rotina estava insana. Acordava às 6h, café da manhã, ia para o projeto. Aula. Trabalhava no intervalo do almoço. Aula. Voltava para Antigua trabalhando na van. Tomava um café correndo, ia para a aula de espanhol e voltava em migalhas para casa. Banho, jantar. E sentava no meu quarto trabalhando mais até às 23h. Pensar que eu saí de casa, viajei até aqui, para passar por tudo isso deliberadamente. Às vezes me pergunto porque estou me punindo. Mas na verdade, apesar do que pode parecer a primeira vista, estou vivendo uma das grandes experiências da minha vida. Amando. Muito. Cada segundo. Às vezes tenho a sensação de que eu poderia levar essa vida para sempre (é só às vezes, depois passa). Não acho que sou uma boa professora (e secretamente eu temo que assim que eu for embora eles descubram que tudo o que eu tentei ensinar foi inútil), nem penso na questão do ofício em si. Só que parece que tudo o que eu faço o dia inteiro faz muito sentido. E vamos combinar que isso é uma tremenda novidade na vida de uma pessoa que passou o último ano carregando mochila e entrando em museu. Quando eu era atriz eu sabia que você não pisa no palco sem que seu personagem tenha um propósito muito claro para si. Tudo o que um ator deve fazer em cena, deve ter um motivo, mesmo que a platéia não veja. É o que faz o personagem ficar vivo, inteiro. Aqui estou viajando, estou explorando a cidade, fazendo até coisas turísticas. Mas, diferente do que fiz até agora, eu sei o que estou fazendo. Não o projeto, não as aulas, ou as crianças. Algo além de tudo isso. Que a platéia não vê (e nem precisa), mas que me faz inteira e viva. Ainda bem que eu não preciso de nenhuma foto no FB para me convencer disso.

3 comentários:

ips disse...

Dri, esse seu relato está sintetizando coisas muito sérias a respeito da atualidade. O que se convencionou chamar de politicamente correto é o mal do século. Confunde. Talvez seja o projeto imperialista contemporâneo. Além da sua perspicácia de sempre, tem também essa descoberta absolutamente zen que você tem feito. É isso aí, Dri ! Seus alunos não vão aprender nada de útil. Eles vão é lembrar com muito gosto de alguém tão especial que atravessou a vida deles !

Anônimo disse...

Politicamente correto. Quem para nesta questão não percebe o que está vivendo, porque está mais preocupado com "o certo e o errado". Desvia para a linguagem uma questão mais simples, imediata. O que há de errado com a percepção da realidade? Agora temos que empregar um certo vocabulário?

Yuki disse...

Banho. ENTENDI agora!