segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

DRI E O VULCÃO

Eu subi o vulcão. Subi e ainda dormi lá. Entrou para minha lista de lugares-exquisitos-onde-já-dormi. Ao lado do deserto, do aeroporto e daquele hostel estranhérrimo em São Luis do Maranhão. O Acatanango é o segundo maior vulcão da América Central. Mas o mais difícil de escalar. Só me deram essa informação quando eu já estava quase no summit, congelando de frio e me perguntando se o gosto que eu sentia na boca era de massa encefálica. Quando eu fechei o pacote eu só gostei da idéia de dormir em cima do vulcão. Mas o Acatanango é pauleira. Martin também topou a roubada. Ele participou do “Volcano Challenge” (uma competição meio brincadeira que rola aqui onde os participantes devem escalar uns cinco vulcões na redondeza.) Ele já tinha escalado o Pacaya (peace of cake), o Santa Maria, o Água, o Tolimã e subiu o Acatanango comigo no sábado. Falou que nem dava para comparar. O que faz o Acatanango tão punk nem acho que sejam os 3900m de altura. A gente foi bem devagar, parando para se adaptar a altitude, então eu quase não senti efeitos. O que matava mesmo era o solo. Uma areia preta estranhérrima, que levantava uma poeira danada. O primeiro trecho já me arrebentou com os pulmões e eu duvidei que conseguisse. Começamos a trilha às 10h30 (achei meio tarde) então o primeiro trecho que era descoberto, bem ingreme e escorregadio foi embaixo de um Sol de rachar. Como a gente ia acampar lá em cima, cada um precisava carregar a mochilona com sleeping bag, mattress, utensilios, roupas térmicas e extras, primeiros socorros, kit básico de higiene, água, comida. Isso significava 15Kg nas costas. Imagina subir uma ladeira de areia fofa, com inclinação maior de 45o com 15Kg nas costas! Isso considerando que eu tô pesando 52Kg, então 15Kg dá uma boa interferida no meu centro de gravidade. Vou confessar que o me fez continuar e não voltar ao pueblo e contratar um carregador foi um menino de 9 anos de idade que estava no grupo. O pai do moleque é um escritor trash estadusinense. Aqueles tipos cabeludos e vegetarianos que parecem personagem de filme dos Irmãos Coen. A gente começou a trilha, o cara disparou numa passada tão insana que nem os guias locais (que sobem aquele vulcão todos os dias nos últimos 15 anos) alcançaram o cara. Detalhe, o largou o filho pra trás. Assim. Sem avisar ninguém. Na maior cara de pau. O molequinho de 9 anos, carregando uma mochila do tamanho dele (tudo bem que o guia estava com a maior parte do peso da mochila dele, mas se eu estava carregando cerca de 1/3 do meu peso, aquele moleque estava com certeza carregando 1/2). Então o guia, com toda sanidade do mundo, fez o papel de pai e foi acompanhando o menino. Toda vez que eu amaldiçoava o peso nas minhas costas eu pensava no moleque. Muita vergonha né? Chamar um carregador quando tem uma criança fazendo melhor do que você? Então eu pensava, “se ele consegue, eu consigo”, e seguia. Nossa passada acabou ficando muito mais lenta por causa dele. Então eu e Martin dávamos uma puxada na frente, parávamos em algum ponto com vista bonita, descansávamos, recuperávamos o fôlego até o guia e o moleque nos alcançarem. E foi assim. Durante as 7 horas e meia que demoramos para subir o vulcão. (Nossa subida estava programada para 5 horas ao todo). Quando chegamos a uns 3500m o frio era inexplicável. Vento, a gente no meio das nuvens. Minhas mãos congelando (para variar eu tinha esquecido as luvas). O menino estava enrolado em posição fetal quase todo roxo, e o pai dele tinha desaparecido completamente. Não estava em nenhum dos postos de descanso. Começava anoitecer (não é uma boa idéia andar por aquelas trilha a noite) e a gente ainda precisava chegar ao summit para ver se achávamos o maluco. Eu e Martin subimos, enquanto o guia ficou com o menino e nossas coisas. Só para ter uma idéia da dificuldade do trecho, foram 35 minutos para subir 400m. Insano! Assim que coloquei o pé no topo do vulcão, bem na beirada da cratera adormecida há mais de 100 anos, os raios laranjas daquele dia que se ia me atingiram a cara. O Sol, quase inutil em sua temperatura, mas imponente de luz, sumia na altura dos meus olhos, enquanto eu içava o que sobrava do meu corpo sobre aquela imensidão de terra vulcânica. Nessa horas a gente não fala. A gente não tira fotos. A gente mal respira. Não havia frio, nem fome, nem músculos queimando. Éramos eu e o vulcão. E minha certeza de que a vida existe exatamente para momentos como aquele. Nós sentamos em silêncio por alguns minutos. Ou talvez tenhamos ficado de pé, já nem sei direito. E voltamos para encontrar o guia, o garoto abandonado e seguir para o acampamento. Esse foi com certeza o pior trecho. A noite caiu rápido, não tínhamos luz. O caminho era por um desfiladeiro escorregadio e muito íngrime. Eu escorregava, minha mochila me puxava para baixo. Me deu pânico. Para ajudas começou a nevar. Quando eu já estava imaginando equipes de busca para resgatar meu corpo hipotérmico de algum burado, avistamos a fogueira do acampamento e um barulho estrondoso em seguida. Uma luz iluminado todo o céu. Como uma explosão. Todos nós demos um salto para trás e um grito. Era Fuego, o vulcão vizinho que tem estado mega ativo nos últimos dias. Cuspindo fogo para os céus e derramando lava pelo cume num dos mais belos espetáculos que eu já vi da natureza. Sentamos em volta da fogueira, todos olhando para Fuego. Jantamos arroz com legumes e chá bem quente. Contamos histórias. O garoto coitado imaginando que o pai ia ser encontrado morto. A gente deu risada e fizemos brincadeiras para ele dar risada. Capotei na barraca em seguida, sendo acordada a cada meia hora com o rugido daquele vulcão ao lado. Acordei também com passos de coiotes rondando a barraca (talvez sentindo o cheiro das barrinhas de chocolate na minha mochila). E acordei enfim para vomitar, com o meu corpo incapaz de processar a altitude, o ar rarefeito, as paisagens, a voz de um vulcão. De manhã comemos fruta e granola em silêncio. Afinal o único que falava o tempo todo era Fuego. O pai do menino ainda desaparecido. Foi encontrado depois e levado para a base. Estava todo enfesadinho. Eu fico pensando, porque alguem faz isso? Todo mundo sabe que não se pode afastar de um grupo quando faz hiking. Que deve-se permanecer sempre as vistas do guia. E todo mundo sabe que o mais fraco dita o ritmo do passo. Eu não entendo porque uma pessoa leva o próprio filho para escalar seu primeiro vulcão, sai correndo na frente e acaba perdendo tudo. Ele não estava lá quando o menino caiu, nem quando escorregou. Não era a mão dele que estava estendida quando ele precisou de ajuda. Não estava todas as vezes que ele via algo maravilhoso e chamava pelo o pai para compartilhar. Mais importante, não estava para ver que seu filho conseguiu. Chegou até o alto. O cara estava tão mais preocupado em provar alguma coisa para si mesmo, que perdeu um do maiores momentos que pai e filho podem ter juntos. Ontem voltamos no final da tarde para Antigua. O cara na van falando um monte de besteira e eu me segurando no banco de trás. Martin fazia meditação chinesa para não voar no pescoço do babaca. Na agência, ele resolveu virar bicho. Foi para cima do proprietário, acusando o guia e todos. Daí não aguentei. Baixou a filha da minha mãe novamente. “Escuta aqui, eu tava quieta, mas não sou o tipo de pessoa que fica quieta quando vê injustiça. O senhor foi irresponsável, egoísta. Se afastou do grupo, colocou a minha vida, do meu amigo, do guia e do seu filho em perigo. Não é trabalho do guia ser babá do seu filho, e o senhor simplesmente virou as costas e não estava lá para ver se ele estava vivo ou morto, com fome ou com frio, nem quando ele te chamava no meio da trilha para te mostrar algo. O senhor estava tão preocupado em ser o primeiro a chegar sei lá aonde, que não viu vulcão, não viu caminho e não viu nada. Se se perdeu é porque quis. Todos nós, que ficamos acompanhando o SEU filho, chegamos no acampamento direitinho, ficamos aquecidos a noite e fizemos todas as refeições. Se o senhor acha que é tão melhor do que todo mundo aqui, contrate um guia particular da próxima vez e uma babá para seu filho, porque não é trabalho do guia fazer o que ele fez nas últimas 24 horas. Quando você faz hiking em grupo, você permanece em grupo. O que o senhor fez foi irresponsável e errado.” É assim. Nem que seja uma cusparada de fumaça no ar, tem gente que nunca fica dormente. Mas as vezes a gente precisa escalar todo um Acatanango para ver Fuego eclodir.

Um comentário:

Anônimo disse...

Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul.

Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando.

Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto o seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza.

E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai:

-Me ajuda a olhar!

Eduardo Galeano, A função da arte/1, no Livro dos Abraços

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