sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

ERUPÇÃO

Hoje foi lava para todos os lados. Eu tive um incidente essa semana com os alunos. No intervalo eles recebem uma fruta. É uma coisa meio valiosa para eles, já que para alguns acaba sendo parte da pouca comida que recebem por dia. Algumas crianças pedem para guardar a fruta e pegar no final da aula porque se transforma em seus almoços. Meio punk. Então Melvin veio para mim e mentiu que tinha guardado a fruta, e acabou levando a fruta de outro aluno, Danilo. Danilo, obviamente ficou arrasado. Foi uma confusão até eu descobrir a mentira. Chamei Melvin na frente da classe inteira. Todos estavam indignados porque Melvin tinha mentido. Então eu dei um grande sermão de como mentira era uma coisa feia, que não era um comportamento aceitável e que, por causa da mentira dele, o colega tinha ficado com fome. Perguntei se ele achava que aquilo era justo. Ele concordou que não. E falei que a mentira nunca era a melhor opção porque a verdade sempre vinha a tona. E que eles deviam ser honestos e dizer sempre a verdade, porque a verdade não prejudicava ninguém, e blábláblá. Para consertar seu comportamento eu disse que hoje Melvin deveria dar sua fruta para Danilo. Ele ficou muito contrariado, mas sabia que estava errado, e toda a classe ficou mega satisfeita. Hoje na hora do intervalo, todos estavam ansiosos para que a “justiça” fosse feita. Eu fiz Melvin pegar seu pedaço de abacaxi e entregar a Danilo. Muito bem. Alguns minutos depois Kim vem me perguntar se Danilo era meu aluno, que ele estava chorando muito e que Sarah (uma das internas da GVI) estava com ele. Fui imediatamente falar com Sarah. Só que ela me dispensou e disse que estava tudo sob controle. Eu insisti, disse que tinhamos tido um incidente (e Sarah só aparece no projeto uma vez por semana), mesmo assim ela me deixou de fora. Em seguida passa ela com Danilo e dá uma laranja para Danilo. Então eu já pulei na frente, perguntei o que tinha acontecido. Resumo da ópera, depois de tudo, Melvin foi atrás de Danilo no intervalo e tirou o pedaço de abacaxi à força. Danilo ficou aos prantos e o que a alienada da interna faz? Passa a mão na cabeça de Melvin e dá uma outra fruta como prêmio de consolação para Danilo. Eu virei bicho. Não apenas porque ela estava me desautorizando completamente. Mas porque aquilo era muito injusto. Então ela vem para mim e diz, “we don´t punish with fruits. It´s our policy, because they are always so hungry.”. Cara! Naquela hora eu fiz juz ao meu DNA. Sentei com a garota e falei tanto. Mas tanto. Que a coitada nem deve ter encontrado o caminho de casa. “Eu sei que a gente não deve usar comida como castigo, ainda mais com o histórico que essas crianças possuem. Seria desumano se eu fizesse algo assim. Mas eu não estava usando comida como castigo. Eu estava fazendo com que Melvin reparasse uma falta grave, especialmente porque essas frutas são algo tão valioso para eles. Eu entendo que eles sentem fome. Mas fome não pode ser desculpa para mentira, trapaça e falta de caráter. O que você ensinou hoje para Melvin foi que está tudo bem mentir e trapacear por fome, porque vai ter sempre alguém redimindo os danos que ele causar nos outros. Repondo com uma outra fruta como prêmio de consolação. E isso pode até ser apaziguador para SUA consciência. Mas um dia você vai embora desse país, e essas crianças vão continuar passando fome. Isso não vai mudar. Então eu entendo que eles tenham fome, mas caráter e valores para mim vêm primeiro do que fome. E eu realmente não dou a mínima se é política da GVI ou não. Eu acho que agi corretamente e agirei da mesma maneira se passar por essa situação novamente. Eu sei que sou uma pessoa imperfeita. Eu cometo erros, vou cometer muitos erros. Mesmo que eu tivesse errada (o que eu não acho que era o caso) você nunca poderia ter passado por cima de uma decisão que eu tomei na frente da minha sala. Você deveria ter me chamado, resolvido entre adultos. E nunca me desautorizado na frente dos meus alunos. Eu perdi minha voz para ter controle dessa sala. Fuego é a sala mais comportada e disciplinada desse projeto, e isso não é à toa. Você nunca poderia ter aparecido do nada e me desautorizado na frente das crianças.”. Virei bicho! A garota só balançava a cabeça e pedia desculpas. Cara! Eu acho que tudo tem sempre sua sombra. Sempre que você se depara com algo incrível e maravilhoso, procure pela sombra. Porque aí sim você vai ter certeza da realidade. Esse é um projeto maravilhoso e eu certamente aconselharia milhões de amigos a passarem por essa experiência pelo menos uma vez na vida. Mas ninguém está se iludindo aqui. (e com aqui eu me refiro a mim mesma). O único motivo que eu estou fazendo esse trabalho voluntário é porque eu acredito que esse é um direito dessas crianças. Que as pessoas têm o direito de receber ferramentas para mudarem suas vidas. Eu não tenho a pretensão de mudar o mundo. Não sou tão megalômana assim. E eu tenho certeza de que se, em 10 anos, eu topar com uma dessas crianças com uma arma na minha cabeça, eles não vão pensar duas vezes em puxar o gatilho. Detesto o politicamente correto. Espero que eles sejam felizes e que esse trabalho faça alguma diferença em suas vidas, que proporcione outras possibilidades. Do fundo do meu coração. Mas eu não sou ingênua. Não sou uma patricinha qualquer de algum país de primeiro mundo colocando fotos no Facebook ao lado de exóticas crianças remelentas guatemaltecas. Não vou tapar o Sol com a peneira só porque é mais fácil para mim dormir à noite. Afinal, os beneficiários devem ser as crianças e não os voluntários. Se os voluntários se beneficiam, bônus. Mas não é o maior propósito. Pelo menos não deveria ser. Então não. Eu não vou aceitar que nenhuma garota inglesa passe a mão na cabeça de uma criança com comportamento errôneo só porque ela está com dó da vida de terceiro mundo que ele leva. Mau caratismo não tem raça, cor, credo, classe social ou localização geográfica. E se Melvin me considerar a Bruxa Má do Oeste, isso vai me deixar muito chateada porque eu gosto de todas aquelas crianças, mas eu estou aqui para ajudá-las e não para fazê-los se apaixonarem por mim. Eu já tenho bastante gente que me ama lá em casa. Não preciso vir até a Guatemala para me convencer de que sou uma boa pessoa. Se depois de tudo, eu ainda for amada. É como eu disse. Bônus. E até onde eu sei, a vida é cheia de bônus.

Um comentário:

Cláudia disse...

Adriana, te dou razão.
A pobreza não pode ser transformada em arma para que se faça tudo o que se quer, porque senão, não resta mais nada. Para elas mesmas.
Porque um dia pode ser que algumas delas consigam sair da pobreza absoluta e este ensinamento vai fazer toda a diferença no futuro delas.
Que atos errôneos são passíveis de punição, mesmo os que parecem pequenos.