sábado, 20 de fevereiro de 2010

ILHA DO CARDOSO

Desde o ano passado a Sel me chama para ir para a Ilha do Cardoso. Ela vai todos os anos, já há 9 anos. Esse Carnaval resolvi ceder aos seus apelos e arrumei o mochilão. Na véspera quase me arrependi, porque o tempo é curto e tenho realmente muuuuita coisa para arrumar, mudança, papéis, documentos, etc. Mas eu não conhecia a Ilha, achei que era uma boa idéia aproveitar um pouco de Brasil e um bom feriado mulherzinha antes de ir. E foi. A Ilha do Cardoso fica na fronteira do estado de São Paulo com o Paraná e se mantém muito preservada, sem as influências da civilização. Um desses poucos casos em que o IBAMA e a FUNAI funcionam. Saímos na sexta cedinho. Eu, Sel, e Paula. e Paula são amigas de Sel, gêmeas, idênticas na aparência, mas completamente diferentes depois que as conhecemos um pouco mais. Queridas, engraçadas, ótimas companhias. E lindas! Então descemos até Cananéia, quatro gostosas em um carro. Em Cananéia pegamos uma escuna até a Ilha. De escuna foram mais de 3 horas por um rio. A paisagem é linda, me lembrou bastante a do Delta do Parnaíba. Alguns botos surgiam na superfície nos acompanhando pelo trajeto e já dando o clima do que seria o feriado. A Ilha em si é bem grande. Quase em sua totalidade preservada pelo IBAMA. Cerca de 50 índios de uma tribo Tupi-Guarani ainda vivem em algum ponto da ilha, mas a visitação é proibida pela FUNAI. Melhor assim. Não gosto da idéia de um bando de gafanhotos trocando espelhos e tirando fotos como urubus em carniça. Melhor deixar os indiozinhos lá em paz. A parte que recebe os turistas é a Vila de Marujá. Vila típica de pescadores, sem quase nada de estrutura. A energia é fornecida por gerador, que só é ligado à noite por algumas horas e de forma bem limitada. Diz a lenda que uma menina drenou toda a energia na ilha uma vez usando o secador de cabelos. A estrutura de hospedagem é básica. Várias pousadinhas adaptadas em casas simples, com quartos cheios de beliches, chuveiros a gás e colchões horríveis. De toda forma existe uma certa dedicação das pessoas às regras básicas de hotelaria. Algo que imagino que foram aprendendo ao longo dos anos. Café da manhã incluso, sabonetinho no banheiro. A ilha toda investe muito no feriado de Carnaval. Ele é bem tradicional e, junto com o Reveillon, representa a única fonte de renda que muitos moradores terão por todo o ano. No resto do ano os turistas minguarão e os homens voltam para a atividade de pesca de peixes e camarão. Com a energia controlada, não existem geladeiras ou outros tipos de eletrodomésticos na Ilha. Logo, gelo é um artigo de luxo. A conservação de alimentos é feita a um custo e uma logística complicada. Um barqueiro chega uma vez por dia com cubos gigantes de gelo que vende para os restaurantes da vila, e os alimentos são mantidos em caixas de isopor. A cerveja é gelada da mesma forma, e não permanece gelada por muito tempo não. Mas isso não impede a legião de turistas, principalmente jovens entre os 20 e 30 anos, que descem de hora em hora das escunas, de passarem os cinco dias e quatro noites do Carnaval completamente embriagados. Ah, sim. A maconha corre a rodo também. Eu como uma careta inveterada (e, cá entre nós, muito distante da faixa etária) prefiro observar e julgar os desmandos da juventude! A comida foi um problema no começo. Ficamos na Pousada da Ilha do Cardoso. Uma casa grande bem em frente ao deck principal da vila. O café da manhã era servido no Restaurante da Valdete, bem ao lado. E era terrível. Pão duro, margarina rançosa, café de serragem. O almoço na mesma Valdete oferecia poucas opções (todas duvidosas) e custava a bagatela de R$29,90 o kilo!!! Até entendo que a comida seja mais cara lá. Custos de frete, a dificuldade de conservação. E entendo também que eles precisem aproveitar o feriado para fazer caixa, mas... Cobrar R$30 o kilo de uma gororoba com cara de merende de escola pública? Ok... Fomos buscar novas opções. Na rua ao lado tinha a lanchonete do Vlad, com lanches bem feitos e gostosos e sucos naturais incríveis. Na trilha para a praia fica uma casa amarela muito gracinha, a Patrícia. Bolos caseiros super fresquinhos, fofos e muito gostosos, salgados também sempre fresquinhos, uma torta de calabresa muito boa e um yakissoba pelo qual o povo fazia fila no final da tarde. A Patrícia foi uma ótima opção de café da manhã também. Pão na chapa, bolo de banana, queijo branco, café bem passadinho, suco. Mas o que nos salvou a vida mesmo foi o Restaurante Abrigo da Ilha. Comida simples, caseira, mas muuuito saborosa à R$15 per capita. Salada por lá nem pensar. O X-Salada, por exemplo, é feito com repolho e cenoura, que são mais resistentes ao calor e possuem maior durabilidade. Alface acho que murcha em algumas horas. Geralmente o que era oferecido como salada eram cenoura, repolho, pepino e tomate picados em uma travessa. (Teve um dia que veio apenas cenoura, tomate e um monte de cebola...) Acho que por isso até, todo mundo que desce das escunas traz um certo estoque de não-perecíveis. O que é um pouco triste porque dá um climão de farofa. A maior parte acampa. Os pescadores alugam os quintais, mas sob controle rigoroso da administração que limita a quantidade de barracas por dia na Ilha. No feriado não havia muita diferença de preço entre acampar e ficar em uma “pousada”. A Ilha também tem um telefone. Só um. Fica em um barraquinho de madeira e um rapaz fica lá o dia todo cuidando do telefone e cobrando as ligações. R$1 o minuto ou R$1 por 5 minutos se a ligação for à cobrar. Fica uma fila o dia todo com pessoas de biquíni esperando para fazer uma ligação, e fica um ouvindo a conversa do outro. Nenhuma separação entre o público e o privado. Aliás, privacidade é artigo tão de luxo quanto gelo. Após algumas horas na Ilha, todo mundo já conhece todo mundo. Então sabem onde você está, o que está fazendo, o que programou para fazer no dia seguinte, etc. Sabem até o funcionamento do seu intestino. Nós ouvíamos todas as noites um casal no quarto ao lado transando. (Bom, as meninas ouviam. Eu capoto e nem um desastre aéreo é capa de me acordar.) À noite todo mundo (e eu digo TODO MUNDO mesmo!) vai para o forró no Beto. Seguindo por uma trilha à esquerda do deck, andamos uns 200m balançando nossas lanternas e chegamos a uma varandona onde bandas tocam forró, e variantes. Aí é terra de ninguém. O foco principal é a paquera, muito mais do que o forró. E muuuito consumo de álcool. Na primeira noite tomei um porre de leve e voltei cedo falando besteiras para a pousada. Nos outros dias ficava só um pouco para socializar e voltava para dormir cedo. Não tinha nenhum gatinho no meu tipo (na Ilha inteira!), então preferi dormir cedo e meditar, à ter de ficar escapando de bêbados a noite inteira. A praia da Ilha é linda. Uma faixa de areia bem longa, na qual se chega por uma trilha de uns 200m na areia também, e o mar limpo e cristalino. Cercada pelas montanhas e vegetação. Toda deserta. À noite fica iluminada pelas estrelas e pode-se ver plânctons na água. (Se eu fosse de ficar chapada iria pirar com os plânctons! Rssss.) Na segunda noite o céu estava absurdo. Parecia um planetário de tão estrelado. Era noite de lua nova, e via-se toda a Via Lactea. Centenas de estrelas cadentes. Acho que foi o céu mais lindo que já vi na minha vida. Indescritível! De manhã, o Sol nascia no mar, e é tão mágico quando ele nasce no mar enchendo de lantejoulas, brilhando, fazendo da água dourada. Eu sentava ouvindo as ondas e meditava, depois saía para correr na longa faixa de areia. Ainda encontrei alguns bêbados esquecidos, dormindo na praia. O Sol se punha no rio, ao lado de um gramado onde todos se sentavam à tarde para ouvir (mais) forró, tomar cerveja e analisar os “alvos” da noite. Dá para agendar alguns passeios durante o dia. Fui em uma cachoeira deliciosa. A gente pega uma voadeira até o ponto da entrada da trilha, sobe uns 800m no meio de mata e muitos mosquitos e se refresca em fosso gelado, de água transparente e pura, cercado de bromélias. As árvores se fecham no alto, fazendo um teto verde e fresco, e a água desce entre as pedras. Lindo. Realmente vivemos em um país muito privilegiado, e eu agradecia o tempo todo por tudo. Aprendi que é preciso aceitar as coisas como elas são, para poder apreciar o que se tem de bom e ruim nas experiências. Carnaval é um ritual pagão de origem. Uma festa profana, onde os homens podem fingir serem deuses por 5 dias. É um feriado onde as pessoas buscam se libertarem, buscam limites, buscam o oposto do que são. Aproveitam o álibi da máscara, da fantasia, para experimentar o que não se pode nos outros 360 dias. Eu tenho buscado o sagrado em mim todos os dias, talvez por isso eu não esteja particularmente sentindo necessidade de extravasar no Carnaval. Acho que usei fantasias por muito tempo. Quero agora experimentar ser eu um pouco. Taí uma fantasia que vai ser uma completa surpresa. Apesar da correria que tem estado minha vida agora, para arrumar a mudança, os últimos detalhes da viagem, a bagagem, me despedir das pessoas queridas. A viagem foi fundamental. Experimentei sentimentos diversos. Me diverti, fiquei mal-humorada. Me queimei, fui mordida por bichos, comi, tive febre. Meditei. Pensei. Pensei muito no que estou fazendo, e acho que só agora estou pronta. Só agora posso enfim por em prática todas as mudanças. Voltei pela estrada pronta. Ávida por empacotar as coisas, encaixotar meus livros, me livrar de roupas. Dizem que no Brasil o ano só começa depois do Carnaval. Para mim foi assim. Meu ano começou na Quarta-feira de Cinzas. E vai ser um ano excepcional.

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