quarta-feira, 12 de outubro de 2011

IMACULADA

Eu adoro aquele filme canadense “As Invasões Bárbaras”. Tem uma cena em que o personagem de Rémy Girard está na cama do hospital e diz que o maior genocídio que a humanidade já presenciou foi o assassinato em massa dos índios nativos americanos pelos espanhóis e portugueses, e mesmo assim não havia um Museu para manter a memória. Sempre que se fala em genocídio a gente lembra do holocausto da II Guerra Mundial. Durante um tempo, quando eu era mais nova, eu acreditava que o grande culto à memória do holocausto iria nos livrar de vermos algo parecido novamente. Assim ficava mais fácil entender que barbáries como o genocídio dos indígenas norte-americanos, o genocídio Boer feito pelos ingleses contra as pessoas de origem holandesa, o genocídio dos armênios pelos turcos, o genocídio filipino pelos EUA, e o maior de todos, citado pelo filme, o genocídio dos índios nativos americanos pelos espanhóis e portugueses. Todos eles aconteceram antes da II Guerra Mundial. Mas então a gente pára para estudar um pouco a História e descobre que pouco tempo depois do final da II Guerra, quando o mundo ainda descobria a frieza nazista em exterminar judeus, ciganos, comunistas, gays, deficientes mentais e físicos; a China iniciava um genocídio no Tibet. Então tivemos o genocídio do população maya na Guatemala e o genocídio no Cambodja nos anos 70, o genocídio dos curdos por Saddam Hussein no Iraque, o genocídio feito pela Utase croata, o genocídio na Chechênia, o da Bósnia. Em 1994 aconteceu o genocídio que talvez tenha mais me chocado. O genocídio do povo tutsi, feito pela etnia hutu em Ruanda. Lembro que na época as notícias eram meio nebulosas. Eu lia o jornal, mas nunca tive uma real dimensão do que estava acontecendo ali. Só fui entender exatamente o que tinha acontecido em Ruanda quando vi um outro filme, “Hotel Ruanda”. Então a sensação de fragilidade da nossa condição humana nunca se tornou tão evidente. Não acho que seja o caso de comparar desgraças, ou uma competição para ver quem teve o pior massacre, mas se 6 milhões de judeus foram assassinados em 6 anos de holocausto, Ruanda produziu o assombroso número de 1 milhão de tutsis assassinados em 3 meses!!! Detalhe: não havia assassinato em massa com câmaras de gás ou fornos de cremação. Os tutsis foram mortos na mão, um a um. As pessoas eram mortas a facão, como animais, com sangue espirrando e gritos e choros. Seus corpos eram jogados para os cães comerem. Em 3 meses os hutus quase exterminaram uma etnia. E na ocasião, as Nações Unidas virou as costas, se retirou do país e permitiu que a barbárie acontecesse. Hoje penso que o extremo culto ao holocausto permite que viremos as costas para coisas assim. Nossa “certeza” de que nunca mais veremos algo como o que ocorreu em campos de concentração, faz com que ignoremos a ferocidade e o impacto do que acontece embaixo do nosso nariz. Ontem eu fui assistir à palestra da Immaculée Ilibagiza. Ela é uma tutsi e escreveu um livro chamado “Sobrevivi para contar”. Durante os 3 meses que seu país vivia um dos maiores banhos de sangue já visto, ela teve a sorte de conseguir se esconder junto a mais 8 mulheres em um banheiro de 1x1,5m na casa de um estranho hutu que se propôs a ajudá-las. Quando foi libertada descobriu que toda sua família (Toda! Pai, mãe, irmão, avós, tios, primos... Todos!) e todas as pessoas que conhecia, haviam sido assassinadas. Todos estavam mortos e ela era a única sobrevivente de seu círculo social. Eu não sei quanto a você, mas eu já sou revoltada sem ter passado por nada tão cruel. Imagino que revoltada seria pouco para alguém que se encontrava na posição dela. Ela, porém rezou. Rezou para ser capaz de perdoar e amar aqueles que fizeram aquilo. Ela conseguiu. Ontem, no palco estava uma mulher bonita, alegre, extremamente iluminada. Cheia de uma vitalidade contagiante. Difícil imaginar que aquela mesma pessoa tenha vivido tanto terror. Ela falou com ternura, com humor e conseguiu dar leveza a um acontecimento que não pode ser explicado. Eu me pergunto, como é possível sobreviver a tanto terror? Como é possível se curar de uma marca como essa? Acho que algumas pessoas são mais iluminadas do que as outras. E a maioria de nós precisa fazer muito mais esforço para chegar lá. Só uma coisa eu acredito que seja comum, e universal. A capacidade de amor. Acho que se todo mundo for capaz de amar seus inimigos da mesma forma que aquela mulher amou os seus, o mundo se transformaria maravilhosamente em um piscar de olhos. O que nos salva como humanos é nossa capacidade de amar, incondicionalmente. Porque vamos viver muitos outros momentos em que assistiremos a humanidade agindo como animais. Algumas barbáries terão suas memórias mais cultuadas do que outras. Mas elas não deixarão de acontecer. Se não formos capazes de amar uns aos outros, a experiência humana está condenada. Na platéia lotada do TUCA, eu arrumei 30cm no corredor para sentar, coloquei minha bolsa entre as pernas e passei o tempo da palestra lutando contra o incômodo e a dor de não poder esticar minhas pernas ou mesmo me mover muito sem correr o risco de dar uma cotovelada em alguém. Por vezes olhava brava para quem deixava o celular tocar, ou resolvesse se levantar no meio da palestra empurrando ombros e pisando em pés e mãos de quem estava sentada no chão. Difícil amar quando estamos em uma posição desconfortável. Só por isso tenho tanta certeza que ainda viveremos muitos episódios bárbaros de intolerância. Tirar essas manchas da alma é mais difícil do que passar por elas. Ironicamente aquela mulher tem o nome que tem. Pensar que ela foi capaz de permanecer imaculada, de perdoar e amar, me dá certeza de que todos nós somos também. Entre cultuar a memória do terror e da barbárie, eu escolho cultuar a memória do amor.

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