sexta-feira, 21 de novembro de 2014

A TRILHA INCA


Eu fiz. Eu consegui. Eu sobrevivi à Trilha Inca. Acho “sobreviver” um verbo adequado para a experiência. Não foi nenhum passeio no shopping. A trilha é puxada e exige muito, não apenas fisicamente, mas principalmente psicológicamente. Vale à pena? Muito! Muito mesmo! É uma peregrinação transformadora, e por mais que eu tivesse me preparado anos para fazer esse caminho, nada me preparou para o que ele realmente é. 

Ainda estou assimilando a experiência. Cheguei ontem à noite de Machu Picchu e hoje cedinho entrei em um ônibus que ficou 10 horas na estrada até chegar em Puno. Estou mancando e não consigo descer escadas sem parecer que fui atropelada. Foram 4 dias, mas a sensação que eu tenho é de uma vida inteira. Impossível passar por isso sem sair transformado. 

Em síntese: São 4 dias de trilha. Os Incas utilizavam várias trilhas na região, mas essa é considerada a mais sagrada, e é a única que chega diretamente em Machu Picchu. Por isso recebe o nome de Trilha Real (ou Royal Trail). Ao longo da trilha vamos cruzando vilarejos e ruínas de templos estrategicamente construídos e que comprovam a teoria de que o caminho era usado como uma forma de peregrinação religiosa até Machu Picchu. E peregrinação nesse sentido tem tudo a ver com merecimento. A trilha é uma prova de fogo. São 43Km, repleto de escadarias de pedras irregulares e altitudes que variam dos 2600m aos 4215m. A trilha é bem controlada, e por isso também é segura. Cada dia de caminhada passa por um posto de controle, onde eles checam o nome e passaporte de cada pessoa que foi dado no momento da reserva (no meu caso, em abril desse ano). São permitidas apenas 500 pessoas na trilha por dia. Isso incluindo carregadores e guias. Para vocês terem uma ideia, meu grupo tinha 15 pessoas, 2 guias e 19 carregadores, incluindo um cozinheiro. O trabalho deles é impressionante e seria totalmente impossível realizar essa trilha sem eles. A estrutura dos carregadores e o papel deles na trilha merece um post à parte. Foi uma das coisas mais impressionantes e surpreendentes que testemunhei.

O começo da trilha. Nosso grupo em sua primeira foto de família. 


O primeiro dia é o mais tranquilo. Parte-se de Ollantaytambo à 2600m, um caminho agradável, repleto de vegetação, sem muita exigência e com poucos trechos íngremes. Ainda assim, são 12Km e acampamos à 3000m de altura. A altitude já faz o fôlego ficar bem curto, e apresenta algum mal-estar. No caminho vimos nossa primeira ruína, de pedras polidas e construída com precisão astronômica como tudo o que os Incas fizeram. Nesse caminho ainda encontramos vários povoados, quechuas vendendo água e gatorade, animais e plantações. 

Wilfredo, nosso maravilhoso guia, apresentando a super equipe de carregadores e cozinheiros que possibilitaram que a gente fizesse a trilha. Gratidão eterna a cada um deles. 


O segundo dia é a prova de fogo, e é o dia também em que muita gente desiste da trilha. Acordamos às 4h30. Os nossos guias são tão gentis que nos levam chá quentinho na barraca na hora de acordar. Tomamos café, empacotamos e caímos na trilha. O desafio hoje é fazer 12Km, subir 1215m, e depois descer 600m para o acampamento. Então o que nos espera são longos trechos de subida acentuada e um ar cada vez mais rarefeito. Até a hora do nosso segundo café da manhã, que foi na última vila habitada da trilha por vota das 10h da manhã, o caminho estava puxado, mas administrável. Depois dessa pausa foram 2h30 de subida íngreme em uma escadaria de pedras irregulares até chegar à “Passagem da Mulher Morta” (nome dado por causa de uma lenda andina. Alguém carregadores dizem que encontraram o corpo de uma mulher morta uma vez à noite nesse pico, e quando o socorro foi resgatá-la, ela tinha desaparecido. Hoje eles acreditam que ela vaga à noite pelos acampamentos atrás do homem ideal.), que fica à 4215m. Só para ter uma comparação, o Pico da Neblina, o ponto mais alto do Brasil, tem 2994m. Esse foi o trecho mais desafiador. Fisicamente eu achei que ia morrer. Sentia meu coração na boca e qualquer movimento exigia todo o ar dos meus pulmões. Psicológicamente, toda sua vida passa em sua mente. Amaldiçoei os Incas, me questionei porque estava fazendo aquilo, duvidei, chorei, ri, briguei muito com os degraus. Foi o momento que me caiu a ficha que essa não era só uma aventura na montanha, um passeio para fazer aos finais de semana. Foi quando me dei conta de que essa é uma jornada espiritual. Quando pisei no summit percebi que não tinha como voltar atrás. Agora era ir até o fim. Depois disso ainda descemos 1h e 600m de escadarias íngremes e escorregadias até o acampamento, onde almoçamos. O resto do dia foi de cochilos e recuperação. 

A conquista da "Passagem da Mulher Morta". 4215m e toda minha capacidade de superação.


O terceiro dia foi lindo. Acordamos mais cedo ainda, às 4h20, para evitar filas no posto de controle. Todos os músculos da minha perna doíam. A panturrilha, o extensor, o quadríceps, os glúteos. Muita dor nos ombros também, pelo esforço feito com os bastões de hiking (que, aliás, são imprescindíveis.). A dor fez o ritmo fica mais lento. O terceiro dia é o mais longo. 15Km, mas a variação de altitude não era tanta. Subimos um pouco, mas descemos de novo para acampar nos mesmos 3600m do segundo dia. Esse é o dia com mais ruínas para explorar no caminho, cavernas, túneis de vegetação, montanhas cobertas de neve e lagos de água cristalina que aparecem no meio do nada. Lindo! Esse foi o dia em que aprendi a parar de brigar com o caminho. Aceitei a dor. Aceitei a irregularidade das pedras. Aceitei um ritmo mais lento. Aceitei, simplesmente. Depois do almoço caiu um temporal, e tivemos que descer até o acampamento embaixo de chuva pesada. Foi intenso. As pedras deslizavam, a água ensopava tudo. Os carregadores passavam voando em nossa volta e eu me sentia totalmente insignificante no meio daquela natureza. Acalmou apenas quando chegamos nos terraços da última ruína, perto do acampamento. Eu estava febril e vomitando, mas não de um jeito que me nocauteasse. Era como se os Incas estivessem me forjando para merecer Machu Picchu. Tomei remédios, me sequei, meditei. Pedi que fizesse um dia perfeito. Que a febre passasse. Que estivesse muito Sol. E que eu conseguisse chegar.

Em uma das ruínas pelas quais passamos no terceiro dia. Cada conversa, cada descoberta, mais e mais surpreendida com os Incas.

O quarto dia já é uma benção só por se chegar à ele. Acordamos às 3h30, a febre tinha passado. A fila do posto de controle já estava grande. Foi o caminho mais agradável de todos. Gentil e suave, como se os Incas me dissessem: “Muito bem! Passou no teste!”. Foram 1200m de descida em apenas 5Km de trilha. Fomos vendo o dia amanhecendo, as nuvens subindo para o céu. Quando chegamos ao Portal do Sol, ele também surgiu brilhante em um céu lindo, azul e imaculado. Os Incas tinham me ouvido. Subi as últimas escadarias, passei pelas colunas de pedra do Portal e, lá estava ela! Machu Picchu!!! A cidade perdida dos Incas. Deslumbrante no meio das montanhas. Parecendo estar intocada desde sempre, esperando que a gente chegasse a ela. É uma emoção indescritível. Ri. Chorei. Senti todo o ar do mundo voltar aos meus pulmões.

A conquista de Machu Picchu!


Uma opinião unânime entre meu grupo foi que ficou muito difícil imaginar chegar à Machu Picchu sem passar pela trilha, sem avistá-la do Portal do Sol. Mais ainda, enquanto arrastávamos nossos corpos sujos e machucados, cruzando com uma infinidade de turistas que chegavam arrumadinhos de ônibus, sentimos que havia algo deslocado. Peregrinar por 4 dias até chegar em Machu Picchu me deu pertencimento. É como uma cicatriz que vai ficar eternamente em mim. Machu Picchu me pertence. Eu a conquistei. Você pode visitar Machu Picchu mil vezes, você pode fazer fotos, decorar guias. Mas só tem uma forma de fazer com que ela se torne parte de você. E isso aconteceu nos outros 3 dias. 


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