domingo, 8 de janeiro de 2012

QUATRO DIAS E NENHUMA MOSCA MORTA


El Chaltén é uma gracinha de cidade. Mesmo. Pequena, charmosa. Às margens de um rio glacial azul turvo e emoldurada pelo Cerro Torres e o Fitz Roy nevado. Lindo, pontiagudo. Apontando para o céu. É fascinante a visão dessas montanhas imponentes. A mesma sensação que tive em Zermatt em 2010, quando vi o Motterhorn e resolvi gostar da cidade de imediato. Internet foi um problema em El Chaltén, o que acabou virando uma boa coisa. Eu queria mesmo desconectar por um tempo e estava impossível. Mais pelo vício da pessoa que a impede de simplesmente desligar e guardar todos os gadgets. Aproveitando a desconexão forçada, me joguei em um trekking de 4 dias nas trilhas em torno do Fitz Roy. Isso significou 4 dias de contato direto com a natureza, paisagens de tirar o fôlego, silêncio, meditação e contemplação. Mas também significou 4 dias de camping no meio do mato, com insetos, água estranha, xixi em arbustos, banho zero e muito carregamento de peso. Pois é! Ninguém chega ao castelo sem atravessar o fosso antes. Foi a primeira vez que eu acampei sozinha. Sozinha de tudo. Carregando mochila, montando barraca, cozinhando miojo. Se foi loucura eu não sei dizer. Só sei que foi uma experiência incrível e eu começo a entender porque pessoas como minha irmãzinha Carol gostam tanto de acampar. Primeiro houve todo o tempo de preparação. Você precisa pensar em todos os detalhes do que vai ou pode precisa no camping, porque depois não tem como correr na padaria da esquina ou na farmácia na última hora. Uma grande vantagem é que toda a água do parque é muito fresca e potável. O que me livrou de carregar litros na bagagem e racionar o consumo para escovar os dentes e lavar pratos. Aproveitei para comprar alguns queijos e vinho e me mimar um pouco ao pôr do Sol (que aqui é às 22h30) com pequenos prazeres na natureza. Kerri (uma americana que conheci junto com Tanja em Torres Del Paine e acabamos nos encontrando e fazendo várias coisas juntas em Chaltén) disse que eu faço “camping deluxe”. Bom, acho que se é para fazer, faça com estilo! E isso vale para tudo na vida. O único problema é que em uma situação como essa, estilo tem um preço. E não estou falando de algo que se resolva com um cartão de crédito. Ao final de toda a arrumação da mochila (com toneladas de Baby Wipes para uma alternativa de banho, vinho, queijos, pães, molho para o macarrão, café de coador, legumes para salada e geléia para o café da manhã) minha mochila de “camping deluxe” estava com cerca de 17Kg. Você pode até pensar que 17Kg é algo absolutamente administrável. Meu sobrinho pesa 17Kg e vivo brincando com ele no colo. Acontece que carregar uma criança de 17Kg por 5 minutos é moleza. Depois de 30 minutos os braços já sentem. Agora experimente carregar uma criança de 17Kg por 4 horas durante um percurso de 9,5Km de terreno acidentado e íngreme. Gostoso! Agora deve mesmo estar parecendo loucura, mas juro que existe uma satisfação de se descobrir capaz, de vencer cada trecho da trilha, de chegar até seu objetivo, e essa é o tipo de satisfação que molda nosso caráter. Foi um sacrifício, mas juro que em nenhum momento eu me violentei. Em nenhum momento cheguei a um ponto de achar que não podia mais, de chorar, de pensar em desistir. A primeira hora de trilha foi difícil. Era o trecho mais íngreme e cada passo me obrigava a usar uma pedra alta como degrau. Dava para sentir cada músculo da minha perna sendo exigido. O trajeto na verdade era estimado para ser feito em 3h30, mas como eu sabia que estava com sobrepeso, calculei que demoraria 30 minutos a mais. Quando cansava, parava e tirava a mochila por uns minutos. Bebia água, tirava algumas fotos, comia uma barrinha de cereal, e depois continuava. As duas últimas horas foram muito agradáveis. O terreno era mais estabilizado e as paisagens tão bucólicas e cinematográficas. Acabei pegando um ritmo e fazendo uma caminhada bastante prazerosa. Acampei por dois dias no Camping Poicenot, que não tem estrutura nenhuma. Nada mais é do que uma área embaixo de árvores reservada pela administração do parque para que os trekkers acampem com segurança. Estava bem cheio. Com o incidente em Paine, todos os trekkers da Patagônia vieram para Chaltén. Com o acampamento montado pude fazer trilhas em volta durante o dia carregando apenas minha mochila de ataque. No geral as trilhas eram de nível moderado. A da Laguna de los Três era a mais exigente, mas nada que não se resolvesse em 1h30-2h de esforço mais árduo. Em compensação a recompensa era uma deslumbrante visão de uma lagoa azul turquesa no alto da montanha, aos pés do Fitz Roy e cercada por dois glaciares, um de cada lado. Nesse dia acordei às 5h para tirar fotos do Sol nascendo. A desconcertante visão da luz laranja surgindo no horizonte e tingindo de fogo as torres e as montanhas, prometendo um dia espetacular. Depois voltei para o acampamento, tomei meu café da manhã deluxe, com pão, queijo, geléia, café passadinho na hora, cereal com leite e suco de laranja. Dá para comer de tudo porque você vai ficar horas queimando até o último grama de caloria nas trilhas. Às 7h30 me joguei na trilha para a Laguna (é toda subida em 70o e de pedras, o que é sempre traiçoeiro porque você escorrega, as pedras rolam e você nunca sabe onde firmar o pé direito). O bom foi que no horário em que eu saí a maioria do camping ainda estava acordando. Cheguei à Lagoa sozinha, sem uma viva alma lá em cima. Sentei em uma pedra bem no centro e meditei por meia hora. Fortíssima a energia de abrir seus chacras em meio a um paraíso como aquele. Depois fiquei mais um tempo contemplando o som do vento no vale, e quando eu descia de volta para o acampamento, as pessoas subiam em peso. Comecei a entender o ditado “Deus ajuda quem cedo madruga”. A única coisa de matar em todas as trilhas e experiências no Parque eram as moscas mutantes que nos atacavam. Juro! Moscas mutantes! Eram umas moscas gigantescas, do tamanho de uma varejeira, mas elas zumbiam como abelhas. Você ali, se matando na trilha e as bichinhas rondando sua cabeça e te enlouquecendo com o zum-zum. Pior de tudo! Elas picavam! Nunca vi mosca picar. Aquelas davam umas mordidinhas doídas se você descuidasse e as deixasse pousarem na sua roupa (Sim! Picavam ATRAVÉS da roupa!!!) De enlouquecer. Às vezes eu era atacada por umas 15 ao mesmo tempo. Era uma coisa completamente sem propósito. De repente todas elas resolviam que seria legal ficar zumbindo em volta da sua cabeça e Bum! Todas juntas a sua volta por uns 10 minutos. Então elas cansavam, e todas desapareciam. Assim. Sem nenhuma explicação plausível. Minha vontade era sair correndo pelo camping gritando e chacoalhando os braços no ar, como um boneco inflável de posto. E vai achando que repelente funcionava? Nada! Destemidas, as danadas. Passar repelente ou Chanel no.5 dava tudo na mesma. Eu tinha delírios de comprar um pote gigante de Baygon e sair pelas trilhas pulverizando e rindo maquiavelicamente. Mas então comecei a pensar no conceito de não-violência. Muito fácil a gente pensar em conceitos de não-violência quando falamos das crianças na África, ou de Yorkshires fofinhos. Todo mundo é contra matar coelhinhos, chinchilas, minks para fazer casaco de pele. Mas quando falamos de uma mosca mutante nojenta e irritante parece a coisa mais natural do mundo borrifar com veneno ou estabacar seus corpos contra as pedras, até que elas agonizem e morram. Fiquei pensando muito nisso enquanto era levada à loucura por elas. E cheguei à conclusão que toda vida é um milagre (mesmo eu tendo certeza que aquelas moscas não são obra divina e foram manipuladas genéticamente em laboratório). E matar uma mosca mutante é tão violento quanto aquelas imagens de caçadores enfiando machadinhas nas cabeças das focas na Antártida. Então eu tenho muito orgulho em dizer que nenhuma mosca foi morta durante a execução das minhas trilhas pelo Fitz Roy! :-)


No terceiro dia mudei minhas coisas para o Camping Di Agostini que era na parte mais baixa do Parque. Mais 4 horas de trilha com mochila pesada nas costas. Dessa vez um pouco mais leve já que eu havia consumido dois dias do meu cardápio de camping deluxo em Poicenot. Essa trilha foi mais chatinha. O primeiro trecho muito aprazível, beirando as Lagunas Madre e Hija, com visões de bosques, flores e nada de moscas. Em compensação as restantes 3 horas foram de uma tortura sem fim. Parecia que o caminho não acabava nunca. O camping, todavia, estava mais vazio e era mais confortável. Um rio forte abastecia com água. Mas como era um rio de glacial a água era turva. Bem estranho. Lá fiz mais algumas trilhas, mais uma tonelada de meditação em pedras estratégicas no meio dos caminhos e em mirantes. E voltei para El Chaltén na sexta-feira no final da tarde. Mais 3h30 de caminhada, dessa vez descida. Estourando meus joelhos e me fazendo pensar com muito amor e saudades na minha manicure, na minha podóloga, no meu cabeleireiro e em uma bela sessão de massagem em um SPA. Mais do que tudo, o que eu pensava era em um banho quente. De verdade. Com água correndo em cima do corpo e cheirinho de sabonete. Eu tenho minhas frescuras, eu sei. Tenho minhas particularidades, minhas neuroses, minhas manias. Tenho, inclusive, (um monte) minhas chatices. Mas quando você se encontrar submersa na natureza, com todas suas coisinhas dobráveis que sustentam fragilmente seus hábitos civilizatórios. Quando você acorda no meio da noite ouvindo o vento quase arrancar sua barraca, e a poeira sujar tudo o que você tem pelas frestas de respiro. Quando você cruza com um carcará gigante buscando comida pelo mato ao amanhecer. Quando você olha para trás, no alto de uma montanha, e perde de vista a trilha, mas sabe que no começo mal enxergava o lugar onde chegou. Quando você trás aos lábios uma concha de mão cheia de água gelada e pura e sente a sede de duas horas de esforço se aplacar enquanto o estrondo de uma avalanche ressoa pelo ar. Quando seu suor gruda na sua roupa e você sabe que ela não vai estar limpa e passada na sua gaveta no dia seguinte. Alguns conceitos de necessidade, precisão, alguns conceitos que nos fornecem a estrutura de quem somos, o que somos, eles mudam. Porque quando você estabelece seus limites de conforto vem à tona sua verdadeira essência de ser humano. E essa é a que nós vivemos nos esquecendo, e nos transformando em profissões, em marcas, em consumidores. Ao final do dia só queremos descobrir como não sucumbir ao selvagem. Como nos livrar das moscas sem matá-las. A melhor coisa de todo esse contato com a natureza é encontrar esse limite que nos faz humanos e animais ao mesmo tempo.


Nenhum comentário: