sábado, 15 de maio de 2010

O CÉU QUE ME PROTEGE


Fazer uma excursão para o deserto era minha única prioridade aqui em Marrocos. Não fazia questão nenhuma de visitar determinadas cidades, mas queria ir ao deserto. Um dos meus filmes favoritos é “O Céu que nos Protege” do Bernardo Bertolucci. Sempre que assisto (e já o assisti um bom par de vezes) me toca a alma em um lugar que, se não é o âmago, é bem próximo dele. Não preciso me perder pelo Saara e ser sequestrada por berberes como a Debra Winger, mas tem algo naquele filme, alguma melancolia, alguma imensidão, que me resgata uma nostalgia de algo que eu nem me lembro de ter vivido. Talvez eu tenha sido berbere em outra encarnação. Ou talvez seja como aquela linda, antológica cena. Ela e John Malkovich, à beira de um penhasco, incapazes de fazer amor. Onde só lhes restam um ao outro, e o céu. Imenso e absoluto, que os protegem. Eu queria ir atrás desse céu. E fui. Sem a atmosfera pós-guerra de Bertolucci, mas acordei às 5h da manhã para me juntar a um grupo e passar uma noite no deserto com uma tribo berbere. No meu grupo estávamos eu e Rocío (a argentina que estava na mesma riad que eu), dois casais de meia idade também argentinos, um jovem casal francês que nunca falavam (só cochichavam um com o outro) e Will, um jornalista australiano (tão lindo, que dava vontade de morder). Rocío acabou se juntando com os conterrâneos, e como o casal francês era praticamente mudo, eu e Will acabamos ficando meio deslocados e criamos uma ligação de cumplicidade. Dividíamos a garrafa de água, tirávamos fotos um do outro. Nada muito comunicado ou estabelecidos, apenas fazíamos companhia um ao outro. Aliás (tirando os argentinos que falavam o tempo todo, mas não se entedia nada), havia muito silêncio durante a viagem. E isso foi mesmo uma bênção. A viagem é bem longa. São quase dez horas em uma van, atravessando todo o Vale de Drâa. Um frio desgraçado nas montanhas. Paramos em Aït Benhaadou (que foi locação do filme “Gladiador” e hoje os berberes abrem suas casas-locações para visita na tentativa de ganhar alguns Dirhams com a glória de tantos Oscars). E só no final da tarde chegamos à Zagora, porta de entrada para a parte marroquina do deserto. (A maior parte do Saara fica na Argélia, mas eu não iria lá se fosse vocês. Existem muitos casos de sequestro por terroristas na região da fronteira, e nem os marroquinos se arriscam muito.). De Zagora foram mais duas horas de camelo até chegar no local onde estavam montadas as tendas e passaríamos a noite. Haviam três outros grupos como o nosso fazendo o mesmo roteiro, mas ficavam em tendas separadas. Um dos grupos cheio de brasileiros barulhentos (é pleonasmo, eu sei!), então de certa forma fiquei até feliz de ter caído no grupo dos argentinos. Chegamos com o Sol se pondo, lindo no horizonte. Um grupo de berberes homens, bem jovens, eram nossos anfitriões. As idades variavam entre 16 e 30 anos. Nos levaram até nossa tenda, que estava aquecida. Haviam vários tapetes no chão, colchões simples e finos para dormirmos e pilhas de cobertores. Hassan, era o responsável pela nossa tenda. Veio nos servir chá. Se apresentou, agradeceu nossa presença. Perguntou o nome de cada um, e fez os típicos comentários sobre cada país para mostrar que conhecia os lugares de onde vínhamos ( “Kanguru!!!!”, pobre Will!), nos desejou boas vindas calorosas e ficou sentado conosco falando banalidades. Depois se retiraram para preparar o jantar. Enquanto eu morria de fome e aguardava, fui andar por volta da barraca. Já havia anoitecido e o céu….. Ah! Ele estava lá. Ainda não inteiro, mas coalhado de estrelas. Estava embasbacada, quase com torcicolo, olhando para cima de boca aberta, quando percebo Will do meu lado fazendo a mesma coisa. “Ainda vai ficar melhor, quando anoitecer mais.” Ele comentou. Sim, a gente tinha um laço de cumplicidade ali. Serviram uma tahine de legumes e frango (muuuuuuuito gostosa, com os sabores derretendo), pão e chá. Um melão extremamente doce de sobremesa. Então acenderam uma fogueira no meio das dunas e juntaram os quatro grupos para uma sessão de conversa e música berbere. Hassan estava me contando que por toda Marrocos a população é berbere. Os árabes se concentram nas principais cidades como Marrakech, Agadir, Casablanca, Rabbat… mas todo o interior e os vilarejos é de população berbere. Um povo muito pobre, e eles sim vivem nas condições precárias que acostumamos ver em filmes. A sessão de música rapidamente se transformou no pior e mais desafinado cancioneiro brasileiro (Ah! Onde tem um brasileiro… Imagine seis!). Eu me encostei em uma duna ao lado de Will e ficamos olhando o céu que se tornava cada hora mais impressionante. Enquanto estrelas cadentes riscavam de tempos em tempos, os brasileiros tentavam ensinar para os berberes a versão de Gilberto Gil para “Woman Don´t Cry”. Do outro lado da fogueira o grupo de argentinos tentava contra-atacar em espanhol (mas na boa! Difícil bater a música brasileira na preferência popular!). Depois de um tempo as pessoas começaram a entrar para as tendas, para dormir. A areia tinha esfriado, eu começava a tremer, mas não queria deixar aquele céu de jeito nenhum. Muito menos para me enfiar em uma tenda com oito outras pessoas e dormir. Então Will vira para mim e diz que gostaria de dormir nas dunas, para poder ficar olhando as estrelas. Praticamente a fome e a vontade de comer. Conversamos com Hassan para saber se poderíamos pegar uns cobertores e colocar os colchões do lado de fora para dormir ao ar livre. “Vocês estão no deserto, podem fazer o que quiserem.”, foi a resposta. E eu fiquei muito grata pelo Will topar a roubada porque isso é uma coisa que eu não arriscaria fazer sozinha. Então deitamos perto da fogueira apagada. Com dois cobertores cada um. E ficamos os dois, de barriga para cima, olhando o céu. O céu supremo, absoluto. Céu que só o deserto tem. Com tantas estrelas cadentes que esgotei todos os meus pedidos, ainda pedi por todos que amo… e sobravam estrelas. Absoluto silêncio. Conforme ia avançando a madrugada o frio aumentava. Realmente aumentava. Graças a ele eu sabia que ainda tinha corpo, que ainda estava viva. Que não havia me desintegrado, me misturado àquela grandiosidade. O céu me sugou. Foi me tirando os pensamentos, as vergonhas, os medos. Foi me sugando as inseguranças, expectativas. O que sobrou tremendo de frio no meio do deserto era só eu. E silêncio. Fiquei tão grata de ter encontrado silêncio. Silêncio em mim. Na minha cabeça. Pela primeira vez em muito tempo se fez silêncio. No silêncio e em mim nua, entendi o que era verdadeiro. O que era essencial. Quando se livra de tudo que não somos nós, sobra muito ainda. Passamos a enxergar o tanto de peso extra ao qual nos agarramos para viajar. O céu nos provem. Nos protege. Nos oferece tudo. Sempre, o que pedimos. Nos oferece tudo. Um pouco inútil voltar para a Terra carregando tanta banalidade. Ficamos em silêncio por nem sei quanto tempo. Algumas horas talvez. Adormeci imóvel. Congelando embaixo das cobertas. Agradecendo incansavelmente fosse lá o que eu estivesse vivendo. Eu estava atravessando. Começando a pisar do outro lado da porta. No meio da noite fomos acordados por cachorros correndo e latindo a nossa volta. Eu estava embarcada no sonho, tinha até esquecido de onde estava. Um dos cachorros parou na nossa frente e ficou cerca de 20 minutos latindo para nós. Eu e Will demos risadas e continuamos em silêncio, olhando o céu e esperando o cachorro cansar para que pudéssemos voltar a dormir. Meu sonho de novo. Sonho repleto de águas turvas que ficavam claras e cristalinas. Pela primeira vez minhas águas ficam claras e cristalinas. Quando começou a amanhecer, meu corpo doía de frio. Um frio que chegava ao limite do suportável. Me encolhi em posição fetal, ainda mais enrolada nos cobertores grossos (mas ainda assim inúteis). Não sentia meus pés, os dedos. Sentia apenas uma dolorida pedra de gelo nas minhas extremidades. Então abri os olhos para enxergar uma das visões mais lindas da minha vida. Metade do céu estava azul escuro, com algumas estrelas inclusive. Como se a noite fosse se retirando de cena, arrastando um manto atrás de si. A outra metade estava azul claro. E o horizonte, um barrado cor-de-rosa soberbo, anunciando o Sol que chegaria em mais alguns minutos. Eu abri os olhos e vi aquilo. Aquele micro-momento em que uma coisa pode ser três. Mas pode ser uma. Ou pode ser nada. Mas quando eu abri os olhos, eu vi que uma coisa pode ser tudo. E estava acima de mim. Estava cuidando de mim. Estava também me protegendo. Atravessei.

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