sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

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Felicidade é uma caixa de Mentex.


Quando eu morava no Jardins passava sempre no cruzamento da Estados Unidos com a 9 de Julho. Ali fica um vendedor de balas paraplégico. Ele fica na cadeira de rodas, com o tabuleiro de balas no colo e conversa com todo mundo. O mais impressionante é que ele sempre, sempre, SEMPRE tem um mega sorriso no rosto! Nunca vi esse cara mal-humorado. Ele está sempre feliz, positivo, de bem com a vida. Quando morava ali, fazia questão de parar na faixa da esquerda, abrir a janela e bater-papo com ele enquanto esperava o farol abrir. Quando não dava tempo de parar, eu gritava um “bom dia” da janela e acenava enquanto passava. Ele se esticava todo na cadeira e me acenava de volta, com aquele sorrisão de quem é feliz na vida. Teve uma semana que ele sumiu. Eu passava ali e me dava um aperto no coração. A gente sempre imagina tragédia. O cara podia muito bem ter ganhado na Mega-sena, mas a gente sempre imagina tragédia. Depois de uma semana ele reapareceu, do mesmo jeito de sempre. Nem tragédia, nem mega-sena. Tinha sido só uma gripe. Depois tirei meu ano sabático, e quando voltei vim morar em Pinheiros. Nunca mais passei por lá. Hoje, eu desci a Pamplona depois de uma maratona burocrática de pedidos de documentos, visitas à secretaria da faculdade e pendências mil, estava aérea, pensando na minha coluna do PPQO de amanhã. Pensando em como as relações humanas estão cada vez mais frágeis e mais difíceis, em como me dá vontade de virar uma bolinha igual tatu e me isolar do mundo. Quando me aproximei do farol da Rua Estados Unidos com a Av. 9 de julho fechado. E lá estava meu amigo. Em sua cadeira de rodas, sorrisão aberto. Por um instante tive o ímpeto de fingir que não tinha visto. Ficar olhando pra frente com cara de ocupada, esperando o farol abrir. Mas então ele veio até minha janela, pediu para eu abrir o vidro e foi então que eu me toquei. Eu já estava enroladinha feito tatu-bola, isolada do mundo. Abri o vidro para o meu amigo e a primeira coisa que ele me disse foi: “Oh, minha linda! Obrigado pela gentileza! Que sexta-feira linda! Vai sair com o maridão hoje!?”. Acho que ele não se lembrava de mim. Certamente que não. São muitas garotas introspectas dirigindo naquele farol todos os dias, e para mim só tem um vendedor paraplégico com quem eu bato papo. É natural que minhas memórias com ele sejam mais vivas do que as dele comigo. Eu não consegui falar muita coisa para ele. Não expliquei que não havia nenhum maridão. Nem que já faz tempo que a sexta-feira à noite não significa mais nada para mim. Não falei que minha grande expectativa do dia era lavar uma pia repleta de louça suja. Nem que todas minhas relações pessoais se reduziam à janelinhas em um chat no computador. Não contei para ele que já tinha morado ali pertinho, duas quadras dali. Nem tentei resgatar na memória dele que eu passava quase todos os dias ali e a gente conversava, e se reconhecia. Na época que eu andava com um Celta básico, peladinho, sem rádio, nem ar condicionado, porque eu era, talvez, muito mais desapegada de conforto do que sou hoje. Não falei para ele que era bom vê-lo novamente, e que eu sempre comprava Mentos, mesmo quando não tinha vontade. A única coisa que eu disse foi, “Hoje à noite eu vou trabalhar!”. Porque era a verdade. Porque é isso o que eu faço todos os dias. Dia e noite. Porque trabalhar muitas vezes vira uma desculpa quando a gente não tem mais nada com o que preencher o espaço da vida. Então ele me olhou, como quem olha a pessoa mais miserável e desamparada do mundo. Me olhou com ternura e compaixão, de quem está em uma posição melhor, muito melhor do que você. “Querida, não faça isso com você. Essa vida toda, é só ilusão. Nada disso é real. Não perca a oportunidade rara da vida por causa de matéria, por causa de dinheiro. A vida vai passar, e você vai perder e nada disso aqui vai ficar. Não deixe de aproveitar um único segundo da vida, por favor!”. Então uma ficha gigante caiu. Aquele homem ali na minha frente, sentado na cadeira de rodas, com papada no pescoço, de pele escura... aquele homem é um buda. Aquele homem é um ser iluminado, que já transcendeu todas as delusões dessa nossa vida material. E quando eu estava alimentando minha decepção com o mundo, ele me veio lembrar que o meu caminho é para o outro lado. Ele veio me acariciar com ternura e generosidade de quem sabe como essa ilusão toda do samsara pode ser dolorida para nós humanos. A gente passa por budas todos os dias, eu sei disso. Só prestamos atenção. Quem iria imaginar que em cima de uma cadeira de rodas, vendendo Mentex, estaria uma pessoa se sentindo muito melhor do que você, dona de todo o conforto de um ar condicionado. Nada contra o conforto. É uma benção tê-lo e sou muito grata. Mas nunca imaginamos que aquele que tem acesso a menos conforto do que a gente possa estar de fato em um lugar melhor. O farol abriu, os carros começaram a buzinar, e eu fui embora meio pasma. Sem processar totalmente aquela epifania. Acho que não me despedi. Certeza que não agradeci. Cheguei em casa, lavei a louça, trabalhei. Agora estou pensando muito nas coisas que eu acho que eu tenho que fazer. Se não é a obrigação em si também uma grande ilusão. 

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